12 de julho de 2010
Três décadas a viajar de comboio
(imagem: Valter Jacinto, flickr)
Gosto de viajar de comboio, principalmente numa época em que utilizar este meio suburbano de transporte não equivale a algumas experiências do passado. Há que salientar os aspectos que, ao fim de algum tempo, melhoraram significativamente.
Nos tempos actuais, já não se verifica gente de pé e amontoada, roubando o espaço vital aos companheiros de viagem, nem passageiros pendurados na parte exterior deste meio de transporte (tendo, então, alguns, chegado a perder a vida por tal motivo). Recordo situações igualmente aberrantes: o fumo dos cigarros a incomodar os não fumadores (ou mesmo alguns fumadores, por ser demasiado invasivo), as avarias constantes com paragens entre estações (isto parecia suceder quando os compromissos e a pontualidade eram mais exigentes), alguns vidros de janelas partidos por pedras lançadas do exterior, o aquecimento ligado no máximo em carruagens quase hermeticamente fechadas e algumas situações a raiar a violência, pois quando as coisas correm mal é mais fácil levar os conflitos às últimas consequências.
Falando em circunstâncias extremas de um passado não tão longínquo, será de salientar tanto as menos marcantes – começar com um quarto de hora de antecedência a pedir licença para sair em Benfica rumo à paragem do 50, desembarcando na gare com menos dois botões na gabardina (tal a violência do pequeno trajecto) – ou (esta alarmante) deparar com um passageiro perturbado que, no Rossio, pegou numa arma de fogo e disparou para o ar , lançando impropérios contra a companhia transportadora (felizmente sem ter havido vítimas). Episódio hilariante, terá sido um apelo do maquinista aos passageiros através do sistema de som, com uma introdução de «senhores fregueses», a suscitar um riso cúmplice e descontrolado na carruagem…
No presente , o aspecto, a título pessoal, mais preocupante, é a dispensa quase total de recursos humanos nas estações ferroviárias: tudo é automatizado, os bilhetes comprados e recarregados em máquinas, a gerar a confusão nos passageiros mais idosos e a dispensar dezenas de funcionários, as portas automáticas por vezes em descontrolo a aleijar os menos ágeis. Esta desertificação parece tornar-se um apelo a actuações potenciadoras de insegurança. Viajante regular nos últimos anos, sempre que vejo uma estação policiada, acabo ocasionalmente por ter a confirmação de terem ocorrido desacatos (não ligeiros) poucos dias antes. Sem defender alarmismos, todas as ocorrências referidas acabam por dar que pensar, sobretudo quando recordo terem os meus pais, no passado e ao longo de anos, feito um considerável número de amizades por viajarem sempre no comboio à mesma hora, tendo alguns desses amigos feito parte de um grupo alargado que, durante alguns anos, retirava alguns fins-de-semana prolongados para viajarem pelo nosso país, prevalecendo algumas das amizades até ao presente.
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6 comentários:
Este texto remeteu-me para os anos 70, quando munido de um cartão “inter-rail”, apanhei um comboio em S.Apolónia, às 10 da noite, rumo a Madrid.
Para Madrid ia…daí para a frente, logo se veria.
Espanha, França, Suiça, Holanda, Bélgica, Itália. Foi o que se viu.
Inesquecível. Durou algumas semanas.
O conforto não seria muito nas carruagens, mas jovens de 20 anos dispensam-no, e os múltiplos episódios vividos compensaram a sua falta.
Recordo que na viagem para Paris, numa noite quente e abafada, um senhor de alguma idade lia alto. Versos, que me chamaram a atenção, pela qualidade. O senhor declamava, e bem, sentia-se que aquela poesia o entusiasmava.
Quando acabou, perguntou-me se eu conhecia o Poeta. Disse que não.
E então, durante mais de uma hora, narrou-me, com bastantes pormenores, a vida de quem tinha escrito tudo aquilo.
Antonio Machado.
Foi há mais de três décadas.
Nunca fiz o inter-rail, ao contrário dos meus irmãos: penso que um deles, até por diversas vezes. Em contrapartida, fui por várias ocasiões a Paris no Sud Express por motivos familiares, na infância com a minha avó e na adolescência já sozinha (também nos idos 70). Dessas viagens teria matéria para um livro, pois alguns dos viajantes de diversas idades e origens eram grandes conversadores e contaram-me episódios que me atreveria a classificar como únicos, assim houvesse tempo e inspiração.
Teresa, gostei desta ‘chamada à memória’ do que era viajar no comboio suburbano da linha de Sintra. O meu meio de transporte preferido. Infelizmente já não sei o que é andar de comboio há uns anos. Portimão não está nas actuais rotas dos comboios que cativam passageiros. Aqui passa um regional quase sempre com poucos passageiros.
Também não fiz o inter-rail e tenho alguma inveja de quem o fez.
Mas voltando à linha de Sintra, aí sim, fiz a asneira toda. Andei pendurado nas portas do comboio, por vezes não havia outra hipótese, este quando chegava à estação de Benfica já vinha completamente apinhado de gente.
É de facto um autêntico disparate circular pendurado no comboio, e muito mais arriscado fazê-lo dentro do túnel do Rossio, como o fiz diversas vezes.
Também fumei dentro dos comboios e atirava as beatas pela janela fora. Um dia, na gare do Rossio, quando me dirigia para o comboio, levei com uma beata na cara. Irritou solenemente a situação. Entrei no comboio, sentei-me, abri a janela e atirei a minha beata pela janela. Acertei num passageiro. Comecei então a ter mais cuidado.
Penso que só quem andou nestes comboios apinhados pode perceber a situação, que tão bem descreves, do sufoco de viajar com o aquecimento ligado, as janelas totalmente embaciadas, o desespero do comboio parar entre estações ou os apertões e os apalpões (aí, e ainda muito novinho, fiquei a saber que as mulheres também apalpam) que se sofria para nos mexermos dentro das carruagens.
Continua-me muito presente a imagem da chegada dos comboios à Estação do Rossio. Saíam primeiro os ‘destemidos’, ainda com o comboio em movimento e depois, assim que o comboio parava, como que uma onda crispada de gente se espraiasse na plataforma, inundando-a de uma multidão compactas, apresada em direcção às saídas superiores da estação ou escorrendo pelas escadas de acesso aos piso inferior. Três, quatro minutos depois esta plataforma já estava seca, à espera de nova leva.
Miguel,
Esse comentário que aqui deixas, seria mais um post sobre as memórias de viajar no comboio da linha de Sintra :)
Teresa, quem sabe se não o escreverei.
Obrigado pelo incentivo.
Por acaso, a gota de água que me fez sair de Lisboa e vir viver para o Algarve passou-se num comboio da linha de Sintra.
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