8 de julho de 2010

Surdo, maluco e tropa

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- Queixa-se de alguma coisa? Perguntou aquela bata branca bem engomada, com galões nos ombros, que deixava entrever os colarinhos de uma farda verde, da camisa caqui clara e a gravata também verde.
Sem resposta, volta a questionar, aumentando um pouco o volume da voz:
- Queixa-se de alguma coisa?
Tinha chegado a minha vez. Nu, sem frio ou pudor, esperei que retirasse os olhos do formulário que não parava de preencher.
Levanta lentamente a cabeça de rosto inexpressivo e cabelo bem curtinho, olha para mim e repete em tom agressivo, prolongando o tempo de pausa entre cada palavra:
- Queixa-se de alguma coisa.
- Sou surdo! Sou surdo do ouvido esquerdo. Nunca ouvi nada do lado esquerdo, desde criança.
Os olhos voltaram ao formulário. Mais cruzes e palavras escritas:
- Tome. Está incorporado. Tem de se apresentar no Hospital da Estrela, ao oficial de dia, amanhã pelas oito, sem falta. Vai fazer exames. Vamos lá ver se não está a mentir. Siga.
Seguiu-se um mês completo de muitos exames aos ouvidos, audiogramas e outros similares. No fim de conferirem e compararem tantos exames concluíram que era realmente surdo. Fiz um mês de tropa. A junta médica militar carimbou inapto para o serviço militar. Tanto que o queria ser. Inapto por opção. Mesmo que não fosse surdo, já tinha decidido, inapto ou salto, guerra colonial não.
Em Benfica, como em todos os outros bairros de cidade, nas aldeias ou vilas de Portugal, há sempre um indivíduo que, pelas suas atitudes bizarras, pouco comuns ou ditas anormais, é conhecido como o maluco de.
Quando conheci o Manuel Lisboa tinha talvez uns catorze ou quinze anos. O Manuel Lisboa era talvez dez anos mais velho, era apelidado de o maluco de Benfica. De facto tinha alguns comportamentos anti-sociais: Partia montras de lojas à pedrada; colocava-se no meio da Estrada de Benfica provocando a paragem demorada do trânsito; verbalizava impropérios a quem passava; pedia cigarros e dinheiro. Situações que manifestamente o divertiam.
Contudo o seu aspecto não se aproximava em nada de um indigente. Vestia-se até com gosto, a roupa mudada e lavada, mantinha o cabelo cortado e penteado, barba feita e a postura física de quem se alimenta bem e sabe cuidar de si.
Sempre que se dirigia aos meus irmãos ou a mim, para nos pedir tabaco, fazia-o com gentileza e usando uma linguagem correcta. Não nos pedia dinheiro porque, sabes lá como, sabia que não o tínhamos. Diversas vezes, na sequência de nos cravar tabaco, entabulava conversa connosco, mostrando-se conhecedor da nossa cultura, sobretudo dos escritores e poetas contemporâneos, declamando de memória frase ou versos das suas obras, em coerência com o evoluir da conversa.
Este ‘maluco’ cativava-nos.
Um dia, no meio de uma dessas conversa, voltou-se para mim e disse:
- Tu és surdo! És surdo do ouvido esquerdo. Disse-o com tanta certeza que estranhei o propósito.
- Sim, sou! Como é que sabes? As pessoas não notam nem acreditam que o sou!
- É simples, basta olhar para ti! Quando conversas inclinas um pouco a cabeça para a esquerda e procuras sempre posicionares-te do lado que ouves.
Um pouco mais tarde, vim a saber que o Manuel Lisboa era um brilhante aluno de medicina que, no terceiro ano do curso, se juntou às lutas estudantis e foi coercivamente incorporado na tropa.
Rebentou uma granada e zás… pirou.

Foto retirada em static.publico.pt/imagens

5 comentários:

Felicidade disse...

Fico sempre profundamente emocionada com qualquer texto que se refira a um episódio relacionado com a guerra colonial.Aqui na minha aldeia, exceptuando o facto de não ter sido estudante de medicina, também temos o caso do Fernando, em tudo semelhante ao do Manuel. E quantos mais não haverá por esse Portugal?Marcas da guerra...

Luís Maia disse...

é curioso que comigo a história é quase igual. só que do ouvido direito, com uma pequena excepção, no fim dos exames todos despacharam-me de regresso a Mafra como se não fosse nada a mim surdo profissional.
Está na cara que os meus exames serviram para safar alguém. quando voltei, não me queixei de nada e enganei o senhor da bata e dos galões, que não topou a minha surdez.

Vinguei-me arranjei uma cunha e fui parar 2 anos a Moçambique, passar férias à conta deles, eu era de CONTABILIDADE e Lourenço Marques era linda

T disse...

Belo texto, parabéns Miguel. Comoveu-me.

Carlos Caria disse...

Pois é Miguel, também na minha juventude passei por casos desses cuja guerra do Ultramar deixou marcas ainda hoje bem visíveis na nossa sociedade, com a destruição de algum tecido familiar, de mães cujos filhos estrupiados, nunca mais foram os mesmos.
Hoje nem o ribombar dos foguetes nas feiras e romarias conseguem ouvir

Miguel Gil disse...

Há de facto muitos Manueis Lisboa por este país fora.
Penso que os portugueses não concluíram a catarse desses tempos. Faz falta fazê-lo, apesar do tempo nos ter ajudado a esquece-los.