13 de junho de 2010

O universo feminino e o prazer da leitura

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Pouco conhecia sobre Maria Archer para além de algumas breves linhas e sucintas notas biográficas em precioso roteiro da literatura portuguesa dactilografado e gentilmente oferecido pela Biblioteca Nacional há mais de duas décadas.
Estes «apontamentos de romancista» assim designados pela autora e editados em 1945, consistem em crónicas no feminino que me levam a discordar de uma apreciação encontrada num blog sobre literatura que a circunscreve a «hábitos de menina burguesa», passando a explicar o ponto de vista: a natureza humana é, ao longo dos tempos, composta por traços imutáveis, independentemente de códigos de etiqueta de épocas delimitadas.
Só o prazer da leitura explica ter rapidamente chegado ao fim do livro ao longo de uma tarde sem que tivesse dado pela passagem do tempo. Ficam, pois, algumas breves considerações certamente impressionistas, dada a adesão e os múltiplos sorrisos ao longo das páginas amareladas a respirar o maravilhoso «cheiro a livro» que nenhum e-book poderá , em tempos mais próximos ou futuros , substituir:
- a actualidade dos instantâneos gerou o tal magnetismo por se encontrarem os mesmos isentos do implicativo tom pseudo-moralista «a lente satírica com que fitei os outros também se virou para quem a tinha na mão»;
- apesar de condicionalismos da época, pasma a coragem de os ver questionados e não aceites enquanto verdades inabaláveis, atitude que confere à escrita uma interessante actualidade «(…) terá que pagar com suor e lágrimas, talvez com sangue também, as ilusões cor-de-rosa que bebeu na fonte cândida dos tais romances brancos de capa azul»;
- foi-me particularmente grato (Archer nasceu no mesmo ano em que veio ao mundo a minha tão especial avó materna) ter revivido um universo feito de memórias partilhadas, histórias hilariantes de volframistas que a avó lisboeta reviveu em Verões na Póvoa do Varzim - o ter dois pianos em casa porque o tocar a quatro mãos no mesmo instrumento é marca de «pobreza», o pão-de-ló a acompanhar a sardinha assada por ser esse o verdadeiro «pão dos fidalgos» foram estórias de infância que ultrapassaram em criatividade (verídica) os relatos da escritora;
- para concluir, confirmo – como a T aqui já tem referido – a modernidade dos antigos pela bem-humorada referência à moderna cosmética (já existente nos anos 40) a prometer a eterna juventude e conquistada através de cremes e tratamentos fabricados com glândulas de animais.

Obrigada, T, por esta oferta (adivinhaste alguns dos meus gostos) bem-humorada que contribuiu para que – em época de correrias – tivesse parado um pouco para respirar fundo e passar por tão agradáveis momentos de leitura.

8 comentários:

T disse...

Gosto muito daquela, "estátua do Estado Novo", risos.
Ainda bem que apreciaste o livro:)
Beijinhos

teresa disse...

Beijinhos, T.

Aquela do Estado Novo associei de imediato a um post que por aqui deixaste em tempos:)

teresa maremar disse...

Maria Archer foi uma das autoras que se inscreveram em registos vários - o cor-de-rosa incluído -, mas foram cultivando as novas liberdades e denunciando as limitações impostas à mulher.
O próprio João Gaspar Simões, consideraria que apenas dois nomes eram dignos de emparceirar com os escritores homens, Maria Archer e Irene Lisboa, ainda que as designasse de "escritores", fugindo ao feminino escritoras :) Considerava mesmo Maria Archer como "atrevida e forte na observação” por se atrever a ultrapassar os preconceitos.

Quanto ao que se publicava, as próprias escritoras de maior nomeada à época - Irene Lisboa, Maria Archer, Maria Selma ou Maria Lamas - concordavam que as mulheres pouco produziam - ou se restrigiam ao romance rosa - porque, dada a baixa taxa de instrução feminina, não existiam muitas leitoras. O cor-de-rosa permitiu conquistar esse público e que algumas dessas escritoras fossem aceites no universo da escrita. E penso que essa foi uma forma bem inteligente de negociarem a sua condição de escritoras, torneando a rigidez e conquistando um espaço que viria a abrir outras portas, assim permitindo que a escrita de autoria feminina alertasse a mulher para a sua circunstância familiar e social.

teresa disse...

O que mais me fascinou na escrita de Maria Archer foi uma frontalidade capaz pôr em causa convenções hoje discutíveis que, na época, nem sequer eram contestadas pela generalidade dos cidadãos. A tónica destes "apontamentos de romancista" vai sobretudo para os sonhos cor-de-rosa, bem como para a procura incessante de casamentos ricos como forma de afirmação social. Se pensarmos nos tempos em que a escritora viveu (aspecto impossível de descurar durante a leitura) e cruzarmos as suas posições com algumas mundividências (e circunscrevo-me à Europa)do século XXI ainda mais espantosa se torna. Acontece que passei de corrida por algumas recensões actuais a escritos da autora que se ficam por alguns parágrafos isolados e, como tal, descontextualizados correndo-se, desse modo, o risco de tornar redutor o alcance da obra. Pelos vistos e na época houve quem já a tivesse interpretado como alguém à frente do seu tempo. As notas biográficas dactilografadas que só há pouco reli, conferem-lhe com justiça a visão ampla e, regressando ao título presente no post, destacaria uma breve crónica na qual Archer lamenta a frivolidade das mulheres lisboetas de classe média em plena II Guerra Mundial, fazendo o contraponto com quotidianos femininos de outras latitudes onde se vive um devastador cenário bélico. O texto tem poucas linhas mas dificilmente se lhe consegue ficar indiferente pela acutilância.

divagarde disse...

Sim, teresa, era o tempo de Lutgarda, Maria Lamas, Alice Ogando, Rachel Bastos, Maria Archer e, claro, Irene Lisboa.
Mas já nas primeiras décadas, até ao surgir do neo-realismo, existem outros nomes como Emília de Sousa Costa, Branca de Gonta Colaço, Sarah Beirão, Ludovina Fria de Matos, Adelaide Félix, Aurora Jardim, Oliva Guerra, Fernanda de Castro. Umas ainda veiculando o romance cor-de-rosa e a costumada organização familiar, mas outras já filiadas no Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas cuja escrita aborda a defesa da mulher contra as injustiças sociais e morais. É, contudo, uma escrita desligada de quaisquer movimentos intelectuais, que viria a modificar-se apenas nos anos quarenta e com o Estado Novo.

T disse...

Muitas delas já faladas aqui e presentes na imprensa feminina da época.

Fernando Manuel de Almeida Pereira disse...

http://group.xiconhoca.com/2009/07/03/digitais-colonias-piscatorias-em-angola-maria-archer/


http://group.xiconhoca.com/2009/08/16/digitais-singularidades-dum-pais-distantes-maria-archer/

Teresa
A Maria Archer foi uma mulher rejeitada pelos "dois lados da barricada", e ainda hoje não é fácil uma unanimidade sobre o seu enquadramento político e ideológico. Sei que morreu amargurada, porque nunca conseguiu ser compreendida. Sofreu muito.
Aí vão dois links onde pode fazer download dos livros dela, um deles por acaso tenho na minha biblioteca.

teresa disse...

Agradeço as referências, Fernando.