25 de junho de 2009
De um caderno diário
A avó deu-lhe uma tablete de chocolate. Guardou-a no bolso do vestido branco bordado com zelo. O calor do autocarro de 2 andares, apinhado de passageiros, faz com que na algibeira reste uma massa indistinta. A menina chora , não pela guloseima desperdiçada, mas por não poder guardar na caixa do tesouro, ao canto da gaveta da cómoda, o bonito invólucro no qual se encontrava estampado um papagaio de plumagem colorida.
A adolescente chega, entusiasmada, ao aeroporto, ostentando a autorização paterna para uma viagem que a irá ajudar a crescer, longe de protecções. O funcionário da alfândega, carrancudo, deixa escapar um “isto de miúdos a viajarem sozinhos para longe está mal! E os pais a permitir!”. Perplexa, ocorre-lhe um pensamento súbito: a revolução dos cravos, nascida há poucas semanas onde descobrir a mudança?.
Cinco anos decorrem. Está num fim-de-mundo durante a estação do cacimbo. Os dias sucedem-se, indistintos. Auxilia os alunos a aperfeiçoar a escrita, a leitura, a conversação. Criados em aldeias castigadas pela guerra, ostentam um olhar triste, mal se lhes ouvindo a voz. Um pequeno avião sobrevoa o telhado da escola já que a visibilidade é escassa e o aeroporto próximo. Como que num impulso colectivo, todos se atiram ao mesmo tempo para debaixo das mesas com ar amedrontado. Sorri-lhes na tentativa de restabelecer alguma paz. Gradualmente, vão regressando às cadeiras.
Mais de uma dúzia de anos a correr. Tempo de férias. Passeia com a filha de tenra idade pelas ruas sinuosas da aldeia. A menina canta com toda a força que a voz lhe permite. Atrás delas, uma velha aldeã. Como que a esconder-se por atrair as atenções, a mãe faz sinal à pequenina para que torne mais baixa a voz. A mulher desdentada, de preto e lenço na cabeça diz, entre gargalhadas: “Senhora, deixe a menina cantar, que alegre ela é!”.
Na freguesia simples, com alguns campos abandonados e algumas fábricas quase paradas, uma festa de despedida dos alunos congrega jovens e respectivos professores. Soam risos… a conversa nasce animada. A surpresa criada pela gratidão juvenil consiste na apresentação de diapositivos com acrósticos personalizados para cada professor. Sorri perante o retrato ali desvelado em verso, registou-o no caderno diário que guarda há 40 anos e do qual retirou, aleatoriamente, cinco apontamentos passados à escrita em páginas hoje manchadas pelo tempo. Permitiu-me que divulgasse dois versos à escolha. Seleccionei estes: “R- ri com vontade quando falamos de tangerinas; C- chora sempre que ouve ler aquele conto do barbeiro tocador de violino…”. Os colegas da retratada olham-na, perplexos, não entendendo o sentido destas palavras. Acabo por compreender que 3 anos ou cerca de 400 lições conjuntas deixam cimentadas verdadeiras cumplicidades.
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