6 de abril de 2009
Para terminar o dia
O conto é a leitura de eleição quando o dia termina. Uma das grandes vantagens encontrada é poder-se chegar ao final de uma narrativa sem que a mesma seja deixada em suspenso para cerca de 24 horas mais tarde. Encerrando-se um ciclo de acontecimentos é possível, no dia seguinte, mergulhar num novo enredo e conhecer diferentes personagens. Assim acontece com as curtas narrativas de José Eduardo Agualusa, sendo este livro aqui divulgado um dos preferidos já revisitado, ao fim de pouco mais de um ano, com o entusiasmo inicial da descoberta.
O pintor Juan Miró, a acreditar no que está escrito nas toalhas de papel do restaurante, terá sido cliente assíduo do estabelecimento: "Miró gostava de admirar na Plaça Reial os jogos de água na Fonte das Três Graças, e as folhas das palmeiras, que, dizia ele, influenciaram a sua obra." Também Corto Maltese, o marinheiro, poderia estar ali, na Plaça Reial, sentado, de perna traçada, cigarro entre os dedos, à mesa de um café. Ninguém repararia nele. Nem sequer, suspeito, se uma arara azul atravessasse o céu e viesse pousar ao seu lado. Este é o género de cenário onde parece natural encontrar alguém como Corto Maltese - um sujeito de tez bronzeada, brinco na orelha, o alheado olhar de quem já viu tudo, de quem já viveu tudo, e que, doente de tanto ter visto e vivido, se deixa ficar numa esplanada, entre palmeiras altas, a contemplar em silêncio a vertigem do tempo; por outro lado passeiam-se pela Plaça Reial, a todas as horas do dia, da noite, aves muito mais raras do que araras azuis. Naquele momento, por exemplo, um palhaço enfiava a cabeça dentro de uma luva de cozinha (impressionante, a elasticidade de uma luva de cozinha!). A alguns metros de distância um faquir estendia-se sobre uma cama de pregos. O palhaço, com o rosto deformado pela luva, lembrava um monstro alienígena. O faquir, um marroquino esquálido, devia estar no ramo há pouco tempo. Faltava-lhe prática. Vio-o colocar uma garrafa sobre os pregos e procurar, a seguir, equilibrar-se no gargalo com o pé direito.
José Eduardo Agualusa, "Outono em Barcelona" in Passageiros em Trânsito, Dom Quixote, Lisboa, 2006
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3 comentários:
É bom ser-se "Passageiro/a em Trânsito" por aqui. :-)
... e já agora e a propósito da modalidade "conto" aproveito para agradecer o empréstimo do Happy Prince and Other Stories do "brilliant" O.W:)
De nada, foi um prazer.:-)
Tem uma escrita lindíssima, pura poesia em prosa.
O. W. escreveu esses contos para os filhos muito pequenos, na altura.
Lembro-me do meu filho P., quase chorar de comoção, com alguns contos.
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