8 de abril de 2009

Os sons de Abril

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As memórias ficam de acordo com as gerações. Foi um privilégio poder ter vivido Abril, independentemente de tudo o que se lhe teria seguido: alguns sonhos gorados, muitos desentendimentos, discussões acesas e de difícil resolução entre alguns amigos, sem que isso viesse a estragar laços que uniam. Os meus pais recebiam lá em casa muita gente e recordo-os, exaltados, a levantar a voz à volta da mesa. Lembro ainda alguns discos de Luís Cília com textos e poemas ouvidos às escondidas, bem como o mítico "Vampiros" de Zeca Afonso. Muitos destes textos denunciavam, com uma frontalidade dolorosa, a violência da guerra .
Apesar de tudo, ninguém se atreverá a dizer que não valeu a pena: fim de guerras obsoletas, liberdade de expressão, abertura das portas de Caxias, maior preocupação com o social, para não se entrar em enumerações exaustivas.
Já em 1972, no colégio da zona – apesar de ter frequentado a escola pública os amigos convidavam - havia tardes de música e de poesia, numa sala de aulas, trazendo à memória vozes como as de Francisco Fanhais, José Fanha e José Barata Moura que, na época, cantava em francês “Ballade du Bidonville “ e “Il fait froid dehors”, talvez numa tentativa de melhor iludir a censura.
Após Abril, as colectividades da zona renasceram com a presença de José Afonso, Fausto, Adriano, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Carlos Paredes. Este último impressionou-me particularmente pelo talento que tentava esconder na humildade que ostentava. Um homem enorme, com ar de quem queria fugir quando era aplaudido com o entusiasmo que nem em eventos grandiosos voltei a presenciar. Agradecia curvado, como que a esconder-se. Penso que dificilmente virá a existir quem venha a conseguir arrancar de uma guitarra aqueles sons da portugalidade que, por momentos, nos fazem sentir de uma dimensão que nos orgulha, sem termos de nos agarrar, de modo patético, à época remota dos Descobrimentos.
Recuando um pouco no tempo, evoco no início da adolescência o programa zip-zip que hoje me surpreende por não ter sido eliminado da tv. Estava-se em finais da década de 60 e apetece salientar uma interessante entrevista feita a Almada Negreiros ainda fresca na memória.
Solnado, então no auge do humor, caricaturava algumas figuras da actualidade. Entre elas, encontrava-se o baladeiro, recém-nascido na sociedade nacional. Os nomes de cantores e compositores que atrás mencionei, não se inscrevem neste quadro humorístico, embora possa associar a rábula a alguns efémeros "cantadores" que apareceram em 74. Um deles, disse-me o meu pai, provocava como que uma espécie de urticária ao igualmente talentoso Fernando Lopes Graça de cada vez que pegava na guitarra (nem sempre afinada e extraindo acordes um pouco desastrosos) e começava a cantar.

17 comentários:

Unknown disse...

Excelente descrição de Carlos Paredes:
"Este último impressionou-me particularmente pelo talento que tentava esconder na humildade que ostentava."
Grande músico!

Anónimo disse...

a importância que um determinado músico, ou escritor, ou grosso modo de um artista, não uma relação directa com a sua 'qualidade' (coisa bastante discutível, como se adivinha), mas mais com a utilidade daquilo que fazem.
alguns dos 'cantores' da fronteira dos anos 60/70 foram úteis pelo que fizeram, independentemente do 'modo' como fizeram.
o luís cília, que até é um excelente músico, foi enquanto 'cantor' muito mau.
mas foi utilmente muito bom.
do mesmo modo alguns que não conseguiram passar o filtro do tempo, mas que fizeram com que se pudesse criar um movimento que seria dificil ter, como agora se diz, 'massa crítica' para valorizar os que eram realmente bons (por exemplo o francisco fanhais, para além das boas intenções, não era mais que um padre em homilia...), ou o letria numa espécie de hinos para o mjt.

resumindo, ou como diria o woddie guthrie: se sabes dois acordes, tens obrigação de os usar para cantar.
e alguns até sabiam 3 (com esforço...).

teresa disse...

rosarinho,
Carlos Paredes será sempre uma referência de que nos devemos orgulhar e- opinião pessoal e subjectiva - a simplicidade que sempre demonstrou ainda mais o engrandece. Neste particular, o povo está certo com o dizer "presunção e água benta...".
Ninguém duvida de que reúne (e reunirá sempre, se isto existir por muito tempo) características para ser admirado por todos os verdadeiros apreciadores de música em todo o mundo (aqui não estou em meio académico, o que me permite fazer apreciações designadas pelos senhores de cátedra como 'impressionistas'):)

teresa disse...

Anónimo,
sem dúvida que os cantores ditos de "intervenção" tiveram, na maioria, uma utilidade inquestionável - uns mais do que outros, se nos reportarmos às palavras e esquecermos linhas melódicas(o sketch do Solnado a caricaturar o género era qualquer coisa como "meio-dia menos um quarto" a rimar com "senhores, estou farto").
Quanto ao rótulo aplicado a Fanhais (padre em homilia) faz pensar que alguns "sermões" (saliento o termo "alguns" com 'extra bold') poderão, sem desprimor, ser considerados textos panfletários fortes.
Relativamente à frase de W.Allen, que muitas vezes não se leva a sério, será talvez aplicável a músicos que, só conhecendo os tais três acordes, não exercem a auto-crítica por diversas razões que só eles próprios poderiam explicar, caso o quisessem.:)

Anónimo disse...

caríssima teresa.
a frase que refiro é do woody, facção guthrie. profissional do canção instantânea como arma de luta e resistência. e esse, penso eu levava-se a sério (como acho que se leva muito a sério o outro woody, facção allen.
mas também poderia referir a resposta do advogado/agente do leonard cohen quando este, então um promissor escritor, lhe disse que o estavam a pressionar para gravar as suas canções, mas que ele não o sabia fazer.
a resposta do agente não podia ser mais clara: mas tu não vais cantar ópera...
há uns tempos escrevi aqui sobre a 'canção' are my hands clean, das sweet honey in rock.

http://diasquevoam.blogspot.com/2004/07/propsito-de-hard-discounts-ikeas-e.html

e dava essa música como exemplo de como um texto panfletário pode ser uma obra de arte sublime.

penso que o sketch do solnado com o josé nuno martins (que costumava entrevistar esses músicos no zip-zip) deverá ser mais entendido no estilo nonsense do seu humor, que lhe permitia criticar ou chamar a atenção para coisas sem se isso fosse óbvio.
mas, seguramente, uma quantidade considerável desses musicos eram francamente maus.
as boas intenções são geralmente intenções boas, mas por vezes apenas isso.

teresa disse...

"shame"... e não é que li "Allen" e não "Guthrie"?(embora continue a pensar que o segundo se teria levado mais a sério do que o primeiro, suposições!)
O Leonard Cohen é um bom exemplo de alguém que "baralha" o conceito (ou preconceito) de qualidade, o mesmo não aplicaria a outros - não anglófonos...nacionais, embora perspicazes e atentos à realidade envolvente - que dizem as palavras por cima da música, mas isso são gostos e, como tal, subjectivos:)

Anónimo disse...

anyway, recomendo-te a audição das sweet honey in rock... são panfletos do melhor que se pode ouvir.

acho que devem estar por aí um ou dois tubos no blog, se procurarem ali no canto superior esquerdo pelo nome das senhoras.

gin-tonic disse...

Como funcionário público, arquivava radiografas no Hospital de S. José, porque gostava demasiado da música para poder viver dela.
Ouvir Carlos Paredes é voltar sempre aos verdes anos, àquele mudar de vida. Sentir a ofegante respiração em cada espira dos seus discos, um respirar de dignidade, de carácter, de génio, um corpo dobrado sobre uma guitarra. Um príncipe, como lhe chamou Rui Vieira Nery.
Por todos os meios que lhe são possíveis, tenta tudo para que as palavras que Carlos Paredes deixou expressas numa entrevista, não se concretizem: “Daqui a pouco ninguém ouve a minha guitarra”

gin-tonic disse...

Já os dias eram claros e o canto livre, quando José Mário Branco disse que “a cantiga é uma arma”
Sempre foi e para trás ficaram uns rapazes que de viola às costas e palavras a tiracolo andaram um pouco por todo o lado a espalhar essas palavras. Um tempo em que era necessário ter alguma coragem, ou dose de loucura, porque “só os bobos do rei é que tinham licença de cantigueiro".
Esses rapazes cantavam mal, alguns mesmo muito mal, as músicas eram simples, mas a maior parte eram pobres, alguns apenas arrastavam os dedos pelas cordas, mas existiam as palavras. Por eles, pelas palavras que cantavam, se ficava a saber que não havia machado que cortasse a raiz ao pensamento (Carlos de Oliveira), perguntas ao vento para saber notícias do pais (Manuel Alegre) na aparência sozinhos, multidão na verdade, lutaremos meu amor (Daniel Filipe) eles não sabem que o sonho comanda a vida (António Gedeão) hão-de ruir em estrondo os altos muros e chegará o dia das surpresas (José Saramago), muitas mais, mesmo muitas.
É certo que alguns desses rapazes saltaram a barricada para o outro lado, mas isso já é uma outra história…

gin-tonic disse...

Porque falaram de Woody Guthrie, e a propósito de Carlos Paredes, lembrou-se, e só agora se lembrou, de que a exemplo desse mesmo Woody Guthrie, que tinha escrito na sua viola “esta máquina mata fascistas”, ou do seu discípulo Pete Seeger que tinha escrito na pele do seu banjo “esta máquina cerca o ódio e força-o à rendição” ,Carlos Paredes poderia ter escrito na sua guitarra, as palavras que João Freitas Branco um dia lhe dedicou: “esta música une as pessoas em vez de as separar”

teresa disse...

Bom dia, gin.
Tantas são as memórias, dado que a música aqui datada (e as palavras que a preencheram) consistem numa inesgotável fonte de evocação.
Acredito que Carlos Paredes nunca ficará votado ao esquecimento, tal não poderia ser possível quando se está na presença de génios (ele não gostaria do epíteto, mas é o que penso). A humildade que caracterizou tamanho talento - como não me canso de repetir - continua a ser tocante, sobretudo numa época em que a arrogância e a mediocridade imperam.
Quanto aos cantores de Abril, como já foi referido em comentário do Carlos - muitos tiveram pelo menos o mérito de terem servido de ponte, tendo o tempo acabado por perpetuar os melhores.
Mais do que a canção panfletária muito directa, marcaram (opinião pessoal) temas como o poema de Natália Correia interpretado por José Mário Branco, "Queixa das Jovens Almas Censuradas", um dos belíssimos textos da nossa literatura, tornado tão marcante pela canção ou outros de simplicidade e beleza como a "Mulher da Erva" de José Afonso (a lista seria certamente maior, mas a um primeiro pensamento surgem estes dois).
Quanto a Woody Guthrie, mais conhecido a título pessoal através do discípulo Seeger, ainda há pouco mais de um ano gostei de "mergulhar" nas suas letras e de ter feito uma leitura ponderada das mesmas . Lembro com nitidez o filme "Bound for Glory" que tenta ser uma biografia (não sei até que ponto fiel) do compositor-intérprete, vi-o por 2 vezes com menos um mês de distância na altura em que estreou.
Aproveito ainda a caixa de comentário para referir que desconhecia as "Sweet Honey in the Rock", tendo encontrado uma acutilância e qualidade no texto sobre a aquisição de bens de consumo. Quanto à excelência vocal (para quê, em casos como este, outros acompanhamentos?)não pude deixar de estabelecer o paralelo com uma versão masculina, refiro-me às vozes "magnetizantes" dos Take 6 que tive o prazer de conhecer "ao vivo" aquando da sua passagem por Lisboa.

T disse...

Meu vizinho muitos anos. Homem simples, simpático e calado.
No primeiro Canto Livre a que fui abraçou-me sorridente. Corria o ano de 1974 e acho que já aqui falei disso. Assim como o Fernando Alvim. Homem muito esquecido e fantástico executante. Aliás para mim o Paredes nunca mais foi o mesmo sem ele. Mas isso sou eu que gosto qb de música.

teresa disse...

Mas que privilégio, T.:)

Anónimo disse...

por acasos vários, tive a sorte de ter cantado em sessões de canto 'popular' (que eram uma espécie de vizinho da esquerda dos canto 'livre' com o zé mário, o vitorino, o fausto, o sérgio e alguns mais em locais tão diversos como a tap ocupada em greve, ou a gulbenkian em espécie de auto-gestão, ou vários quarteis pelo país, ou cooperativas e fábricas.
bons tempos de enorme entrega.
o mano da presidenta acompanhou-me em muitos desses assuntos...

teresa disse...

Ora aí está o que deverá ter sido outro privilégio, desconhecia essa distinção entre uns e outros cantos:)
Cá pela terra existia o GAC que além de cantorias também se encontrava ligado ao teatro e que recordo vagamente.

T disse...

Mas os canto livres a que assisti eram com esses tb. Plus Paredes.

T disse...

http://diasquevoam.blogspot.com/2006/02/memria-de-elefante.html