6 de abril de 2009

Cultura e civilização: lembrando Bento de Jesus Caraça

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Durante alguns anos, terá sido exclusivamente o nome da avenida onde vivi . O meu pai ficou contente quando – após 1974 – a artéria para onde me mudei passou a ter o nome deste matemático cuja vida foi breve, mas nem por isso menos marcante.
Tendo consultado a biografia, notei que – apesar de ter pertencido a uma geração bastante anterior – viveu na aldeia de Montoito, perto de Évora, terra natal de dois tios casados com as duas irmãs da minha mãe.
Os registos também me levaram a associar a ligação de amizade e frequente convívio que meu pai teve com um dos posteriores responsáveis pela biblioteca Cosmos – referência importante na cultura nacional.
No entanto, o aspecto mais marcante terá sido, sem sombra de dúvida, encontrar um texto de uma comunicação proferida por Bento de Jesus Caraça com o título: A Cultura Integral do Indivíduo. Há ideias que se tornam perenes, comprovando serem os seus mentores aqueles cujo olhar é mais nítido. Quando ainda há pouco se discutia – em grupo restrito – a democracia representativa na Grécia, conceito grato, embora algo nostálgico, deparei-me casualmente com um texto claro e sempre actual.


A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.
E para atingir esse cume elevado, acessível a todo homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. Não deve também confundir-se cultura com civilização.
O grau de civilização de um povo mede-se pela quantidade e qualidade dos meios que a sociedade põe à disposição do indivíduo para lhe tornar a existência fácil; pelo grau de desenvolvimento dos seus meios de produção e distribuição; pelo nível de progresso científico e utilização que dele se faz para as relações da vida económica.
O seu grau de cultura mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e da facilidade que ao indivíduo se deve dar para a viver; pelo modo como nele se compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados os progressos da ciência; pelo modo com entende a organização das relações sociais e pelo lugar que nelas ocupa o homem.
Assim, um povo pode ser civilizado e não ser culto e vice-versa. Não pode, por exemplo, comparar-se o nível desenvolvido de civilização do povo americano actual com o incipiente do povo ateniense do período áureo, como não podem comparar-se os seus respectivos graus de cultura, muito superior o deste ao daquele . Entre um Péricles e um Hoover medeia uma distância enorme, aquela mesma que separa o povo que aplicava a lei do ostracismo para evitar que um indivíduo influente pudesse exercer coacção sobre a liberdade dos cidadãos, daquele outro povo em que há anos foi possível que um grupo de homens metesse outro homem, porque era revolucionário, dentro de uma gaiola e o andasse mostrando de terra em terra, a tanto por cabeça.
Houve quem dissesse um dia que as gerações dos homens são como as das folhas, passam umas e vêm outras.
Está na nossa mão o desmentir o significado pessimista desta frase.
Só figuram de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores cujo ideal de vida se concentrou egoisticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro pela resolução, em bases largas, dos problemas que lhes estavam postos, numa elevada compreensão do seu significado humano.
Essa concentração egoísta tem um nome - traição, e se hoje trairmos, será esse o nosso destino - ser arredados com o pé, como se arreda um montão de folhas mortas.
E não queiramos que amanhã tenham de praticar para connosco esse gesto, impiedoso mas justiceiro, exactamente o mesmo que hoje nos vemos obrigados a fazer para com aquilo que, do passado é obstáculo no nosso caminho.
Bento de Jesus Caraça, A Cultura Integral do Indivíduo (excertos)

7 comentários:

Unknown disse...

Amiga,

Adorei este excerto!
Muito interessante este convite à reflexão mais profunda e à responsabilização pelo nosso destino.
Obrigada pela partilha.
:-)

teresa disse...

De nada, gostei do excerto que mal conhecia:)

gin-tonic disse...

E de repente, na tarde que não é de chuva nem sol,ficar muito feliz por alguém ter ido buscar Bento de Jesus Caraça - um dos que contribuiram, e de que maneira, para que ele hoje seja o que é...

teresa disse...

Fico contente quando os "posts" têm algum sentido para quem os lê:)

Tareca disse...

acho que puxou um momentinho de e para cada um de nos. E a tarde de hoje realmente foi de adivinha.. so nao sei é se gostei ;(

teresa disse...

Tareca,
o comentário deixou-me um pouco em "suspense". Espero que o post não tenha contribuído para o tal "não sei se gostei":)

Tareca disse...

foi da finta meteorologica que nao gostei. Ora entra luz pela casa, ora entra aquela tonalidade propria da iluminacao triste do ceu carregado... o post adorei!