6 de janeiro de 2009
Piercings, varizes e senhores dos seus narizes
Senhora da sua variz
A Sandra, da turma R do 9º ano, que contém, com alguma dificuldade, 14 anos num corpo avantajado, ontem fez-se notar. Não trazia, como de costume, o seu cabelo longo e liso, cor de azeviche, que escondia as orelhas. Sentou-se à minha frente. Até que a reconhecesse, tive de devassar todas as prateleiras da minha memória recente.
Trazia o cabelo rapado, um ermo rectangular perfeito que dava a volta à cabeça. Do cimo desta, descia um repuxo, até quase à cintura, um tufo de cabelo liso de cor amarela biliosa. Subia por cada uma das orelhas, em direcção ao céu, um cortejo de pequenos carrapatos de ferro galvanizado.
Na encosta do nariz, exposta a barlavento, sobressaía uma caganita de cristal resplandecente.[…]
Procurei saber se se sentia bem na sua nova pele. Acenou-me que sim, com um sorriso tímido. Perguntei-lhe se um dia não se arrependeria de ter provocado marcas no seu corpo que nunca mais poderiam apagar-se.
Garantiu-me que não, num tom de voz aparentemente vacilante.
Quase sem dar por isso, desencabrestou-se-me o educador militante que há dentro de cada funcionário do ministério da educação e passei a explicar que as modas, porque o são, passam de moda, que os 14 anos de idade não se aguentam muito tempo nessa idade, e que os espelhos todos os dias nos devolvem as nossas imagens que, até elas próprias, não gostam de nós. Empenhei-me, mais ainda, em demonstrar que o velhaco do tempo, para além disso, se encarregava, sem ninguém o consentir, de nos fazer uns body-piercings indeléveis, muito normalizados, do tipo rugas, pés-de-galinha, varizes, etc. A Sandra abanava o seu repuxo amarelo e não se convencia: “Que não s’tôr, que há muita gente mais velha a fazer isto e não se arrepende, até a minha mãe, que tem 43 anos, fez agora uma tatuagem bué da fixe no tornozelo”.
O argumento foi poderoso e fez-me compreender, em definitivo, que por detrás de uma primitiva moderna está sempre uma primitiva mais antiga. […]
Em desespero de causa, e já um pouco nervoso, resolvi mobilizar o meu argumento derradeiro: “Ouve Sandra, hoje estás muito senhora do teu nariz; mas um dia quando acordares ficarás, sem o quereres, senhora da tua variz e não vais andar de mal contigo por usares apenas tatuagens naturais deste tipo”.
E mais não disse. Mas fiquei com vontade de investigar quem é que teria tatuado na minha mentalidade esta aversão perpétua a ilustrações subcutâneas e a perfurações, ainda que carinhosamente feitas por emplastros, com retro-escavadoras de miniatura, em gabinetes de calistas assépticos.
José Alberto Quaresma, Direito ao Erro: a Batalha da Educação em Portugal (transcrito com supressões)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário