3 de dezembro de 2008

Lembranças a partir do texto da T.

Relembro alguém que encontro durante anos, especialmente nos dias de Inverno, a dormir no cúbiculo da caixa multibanco a poucos quilómetros de casa. Tem barbas imensas, cabelos revoltos, idade indefinida. Um dia perguntou-me se me podia pedir um cigarro. Como o observava há anos, tendo mesmo enviado um SOS exterior (não sei se a minha tomada de posição, talvez abusiva, lhe teria agradado caso viesse a ter conhecimento da mesma), perguntei-lhe fazendo-me de forte: "não tem família?". Percebi que a voz lhe tremia e recebi em troca uma resposta esfarrapada que não irei revelar.
Curiosamente, o que aqui leio, da iniciativa desta equipa, vai-me trazendo associações mentais umas mais reais, outras ficcionadas - será mesmo assim? -, como é o caso desta narrativa utilizada num teste de Língua Portuguesa no passado ano lectivo:
A noite está quente, a noite é longa, a noite é magnífica para ouvir histórias, disse o homem que veio sentar-se ao meu lado no muro do pedestal da estátua de D. José.
Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento, eu olhei para o meu interlocutor, era um vagabundo magro com uns sapatos de ténis e uma camisola amarela, tinha a barba comprida e era quase careca, devia ter a minha idade ou pouco mais, ele olhou para mim e levantou o braço num gesto teatral. Esta é a lua dos poetas, disse, dos poetas e dos contistas, esta é também uma noite ideal para ouvir histórias, e para as contar também, não quer ouvir uma história? E porque é que teria de ouvir uma história?, disse eu, não vejo a razão. A razão é simples, respondeu ele, porque é uma noite de lua cheia e porque você está aqui sozinho a olhar para o rio, a sua alma está solitária e saudosa, e uma história podia dar-lhe alegria. Tive um dia cheio de histórias, disse eu, acho que não preciso de mais. O homem cruzou as pernas e apoiou o queixo nas mãos com ar meditabundo e disse: precisamos sempre de uma história mesmo parecendo que não. Mas porque é que você me quer contar histórias?, perguntei, não estou a perceber. Porque eu vendo histórias, disse ele, sou um vendedor de histórias, é a minha profissão, vendo as histórias que eu próprio invento. Não estou a perceber, disse eu. Olhe, disse ele, seria uma longa história, mas não é essa que lhe vou contar esta noite, em geral não gosto de falar de mim, gosto de falar das minhas personagens. Não, não, protestei eu, a sua história está a interessar-me muito, conte-me mais coisas de si. É simples, disse o Vendedor de Histórias, eu sou um escritor falido, a minha história é esta. Desculpe, disse eu, mas realmente não estou a perceber, não me quer contar mais detalhes? Bom, disse ele, eu sou médico, estudei medicina, mas a medicina não era ciência que eu gostava de estudar, quando era estudante passava as noites a escrever histórias, depois licenciei-me e comecei a exercer a minha profissão, comecei a trabalhar num consultório, mas aborrecia-me com os meus pacientes, não me interessava os casos deles, o que me interessava era ficar à minha mesa a escrever histórias, porque eu tenho uma imaginação prodigiosa a que não consigo pôr freio, é uma coisa que se apodera de mim e me obriga a inventar histórias, histórias de todos os tipos, trágicas, cómicas, dramáticas, alegres, superficiais, profundas, e quando a minha imaginação se desencadeia quase não posso viver, começo a suar, sinto-me mal, fico inquieto, fico esquisito, só consigo pensar nas minhas histórias, não há espaço para mais nada.
Antonio Tabucchi, Requiem

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