19 de julho de 2008

Beatriz

O adeus entre dois consumidores à saída da caixa do hipermercado e as limitações de um deles para uma reacção contundente; os bipes da Beatriz emoldurando a cena; graças a deus a banda magnética dos cartões salvar-se-á; a minha experiência como consumidor da evolução do volume do desamor; a Beatriz não se compadeceu e chamou outra Beatriz para varrer o estardalhaço; parece ter-me caído qualquer coisa do peito mas creio que só mais tarde perceberei o que foi.

Se eu não estivesse carregado com um saco de compras em cada mão mais o cartão multibanco, o cartão super-desconto e o talão da caixa enfiados na boca, à procura de um sítio para pousar os sacos, libertar as mãos, tirar a carteira do bolso e arrumar lá tudo, ter-lhe-ia tocado no braço e dito qualquer coisa; ter-lhe-ia apertado o braço com o carinho do costume – o mesmo que usava para lhe apertar o corpo todo no meu e apertar na minha a porção de alma que ela me deu e que depois me foi retirando aos poucos até agora ma retirar completamente e ter-lhe-ia dito qualquer coisa mais tocante ainda que o toque da minha mão no braço dela, não sei bem o quê mas qualquer coisa tão funcional como o abre-te sésamo das histórias infantis, capaz de inventar portas abertas e câmaras secretas no interior de pedregulhos compactos; ter-lhe-ia dito um abre-te sésamo talvez aludindo àquele poema do adeus, de que ela tanto gosta, dizendo-lhe que continuo a acreditar que os meus olhos são peixes verdes porque ao lado dela todas as coisas são possíveis. Ou aludiria a outra coisa qualquer, não sei o quê, mas sei que as palavras certas apareceriam no momento certo porque sei como funciono bem sob pressão nem corro nada de especial mas corro bastante se vier um cão grande atrás de mim, por exemplo (tenho pavor a cães grandes).
E enquanto a Beatriz – gosto muito de ler o nome das operadoras de caixa nos talões – sorria com o sorriso que lhe deram no pequeno curso intensivo e fazia um bip por cada coisa que os consumidores lhe punham no tapete rolante, eu meneava a cabeça de um lado para o outro, como um animal enjaulado, à procura de um sítio onde pudesse pousar pelo menos um dos sacos. Mas não havia nenhum: o pavimento estava sujo com os pés de chuva enlameada que os consumidores traziam lá de fora e os banquinhos a imitar banquinhos de jardim – que adornam o corredor ladeado por uma coluna infinita de beatrizes a fazer bip e uma coluna infinita de lojas pequenas com outras beatrizes lá dentro –, estavam todos ocupados pelos entes queridos dos consumidores que esperavam ordeiramente pelos bipes que a Beatriz lhes ia dar depois de os inquirir sobre a existência do cartão super-desconto nas suas vidas: «bom dia, tem cartão super-desconto?» – se tinham, muito bem, se não tinham, muito bem na mesma que a Beatriz não se importava embora alertasse para as vantagens de o ter.
E como não pude libertar sequer uma mão não lhe pude tocar no braço. E como estava amordaçado com o cartão multibanco, o cartão super-desconto e o talão da Beatriz, e os meus dotes de ventríloquo nunca foram grande coisa, apenas consegui dizer um «mufum mufum» que nem eu percebi bem o que era, que de abre-te sésamo não devia ter nada e que se serviu para alguma coisa foi para insalivar ainda mais a tralha que tinha na boca – felizmente, por sorte, graças a deus, tanto o cartão multibanco como o cartão su-per-desconto tinham sido abocanhados pelo lado contrário ao da banda mag-nética ou ficariam de certezinha absoluta inutilizados.
O desamor, pela minha experiência, pela minha observância – pelas minhas anotações num caderninho palerma que comprei numa loja de produtos étnicos de um centro comercial –, começa por ser uma massa informe onde o potencial desamado vai tocando na esperança de a desviar da forma que teme que ela esteja a tomar. O tempo não ajuda porque coze este tipo de massas contribuindo para a sua solidificação. Por outro lado isto segundo a minha experiência, a minha observância pessoal e as minhas anotações no caderninho palerma, claro, claro: longe de mim querer estar para aqui a ditar leis sobre o assunto , a massa do desamor tem uma filha-da-puta de uma espécie de memória intrínseca da forma definitiva que deve tomar que a faz caminhar para ela com tanta convicção que o desamado, que ainda não o é, não se livr-rá de o ser por mais que lhe toque com as mãos ou a tente, num estádio mais avançado de solidificação, desbastar à martelada.
Mas, como já disse, o meu caderninho etnico-palerma não dita leis e eu acredito que se lhe tivesse tocado no braço, se lhe tivesse dito aquilo dos meus olhos serem peixes verdes – ela gosta mesmo muito do poema do adeus , ela teria reconsiderado: ter-me-ia repensado. Mas ninguém reconsidera ou repensa um incompreensível «mufum mufum», ainda por cima enrolado com o murmurinho dos consumidores crescidos, os gritos histéricos dos consumidores em crescimento e os os bipes e os «bom dia, tem cartão super-desconto?» de uma fiada infinda de beatrizes.
Ela foi-se embora e eu fiquei colado ao chão, imóvel, a anunciar preços baixos com ambas as mãos: os meus olhos deixaram de ser peixes verdes mas a água do aquário deles deve ter vertido umas gotas porque senti um fio de frio correr-me pela cara abaixo. Os olhos da Beatriz, que deve ter reparado na cena, pararam nos meus uns segundos, entre o «obrigado» ao consumidor atendido e o «bom dia, tem cartão super-desconto?» ao consumidor a atender o tanso não tinha e ela explicou-lhe as vantagens , e eu, dada a minha fraqueza, dado o meu desamparo, tentei perceber neles algum compadecimento. E talvez tenha havido mas o pequeno curso intensivo deve ter-se sobreposto porque a voz do hipermercado, que acabava de anunciar o abaixamento do preço das embalagens familiares de margarina, anunciou logo a seguir uma «empregada de limpeza para a saída da caixa treze»: apareceu vinda não sei de onde uma outra Beatriz – vestia uma farda diferente, não fazia bip a ninguém nem parecia interessada em saber se os consumidores tinham ou não o cartão super-desconto mas não deixava de ser igualmente uma verdadeira Beatriz que varreu da minha beira cacos de qualquer coisa que se tinha estatelado no pavimento; qualquer coisa que não percebi muito bem o que era mas que assim de repente dava a ideia de me ter caído do peito. Quando finalmente con-segui um sítio apropriado para pousar os sacos, apalpei-o a ver se de facto ti-nha perdido alguma coisa. Não dei por nada mas regressei a casa desconfiado – há coisas que se perdem e pelas quais só alguns dias depois se dá verdadeiramente pela falta.


António Gregório

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