3 de dezembro de 2007

Superstar


Fui ver o Jesus Cristo Superstar (JCS) ao Politeama. As revisões eufóricas da temporada no Porto assim o aconselhavam. Fui de pé atrás: contra as minhas expectativas o facto de conhecer música e letra de cor há mais de trinta anos e de ter visto o espectáculo em Londres na época.

Para quem me ler fica a frase-chave: vão ver, que vale a pena.

A história é conhecida, assentando na tensão constante entre Judas, uma figura aqui fortemente politizada, e Jesus. Pilatos, cuja intervenção é breve, tem um momento de diálogo essencial com Jesus sobre a verdade. A história acaba com a crucificação e morte de Jesus. A estrutura musical é a de uma série de peças instrumentais ou corais e canções, assim como de diálogos entre personagens. Novo para a época foi o uso de uma matriz de rock com intervenção orquestral num empreendimento teatral desta natureza (além das experiências bem sucedidas de Hair, Tommy (em disco, então) e de Godspell, esta praticamente contemporânea de JCS).

Filipe La Féria tem feito um trajecto inteligente, combinando escolhas populares com o uso imaginativo de meios de produção escassos. Cenograficamente percebe-se que há limitações (mesmo assim terão sido mais de dois milhões de euros), mas o uso arguto da luz e da coreografia permitem passar os sentimentos da peça com eficácia. É discutível a metodologia empregue na cena da abertura, que poderá ser acusada de oportunismo, por uns, e de superficialidade de paralelismo por outros (não direi do que se trata para não reduzir o seu impacto); contudo, o ritmo das imagens, em conjunção com a música, não deixa de causar um calafrio. As coreografias usadas funcionam bem, com particular destaque para o momento cenicamente mais conseguido para mim, o de Jesus assediado por pobres e doentes. Belo o enquadramento do sonho de Pilatos, previsível a cena com Herodes, ridícula a taça da última ceia – o único adereço de palco despropositado pela sua dimensão. A morte de Judas é fortíssima e traz-nos outros paralelismos imediatos à mente.

Traduzir as letras de Tim Rice, plenas de significados e alusões bíblicas, seria sempre complicado. La Féria e António Leal, quando a tradução literal não funcionava (a maior parte das vezes) optaram por adaptar o texto. Não consigo dar muitos exemplos (escrevo com base numa única audição e sem a versão portuguesa à mão) mas há exageros (chamar “puta” a Maria Madalena na versão de What's The Buzz/Strange Things Mystifying, por exemplo, era escusado) e afastamentos significativos do texto original (Could we start again, please?, Canção do Rei Herodes). O espírito da peça, contudo, passa incólume na tradução.

Convém não esquecer que é, antes de mais, de música que falamos. Esta produção safa-se razoavelmente, tendo em conta os meios. Os músicos são competentes e tocam com rigor e alegria, mas não é um sintetizador que reproduz o arrepio de cordas e metais ao vivo – e este é, de longe, o ponto mais frágil do trabalho. JCS merece uma pequena orquestra que não cabe no Politeama e isso nota-se. Identifica-se ainda, em relação às gravações originais, um rearranjo de alguns finais para maior impacto. Não era preciso. A música é suficientemente boa para se aguentar sem finais grandiloquentes adaptados à piroseira nacional. O crescendo final do coro de Everything’s alright, um dos momentos musicalmente marcantes da partitura, perde-se numa sonoridade delicodoce e deveria ser revisto.

Os actores/cantores são um consolo. Aquece a alma ver novas gerações a fazer teatro musical assim – representando bem, cantando bem, transpirando o gozo do que estão a fazer sem perderem a compostura profissional indispensável. Os cantores nos papéis principais (Jesus, Judas e Maria Madalena) revezam-se ao longo da semana. Vi Gonçalo Salgueiro, Pedro Bargado e Laura Rodrigues nesses papéis. O primeiro, voz com excelente amplitude e expressão, foi contudo demasiado doce em agudos que deveriam transmitir raiva e/ou angústia (é a minha memória de Ian Gillan na gravação original a fazer das suas). Representou muito bem, mas teria ganho com mais assertividade nas suas posições (opção de encenação, presumo). Pedro Bargado faz um Judas sensacional, poderoso na voz, torturado nas suas contradições. Havemos de ouvir falar muito dele. Laura Rodrigues precisa de ganhar expressão e de perder alguns ademanes de Mariah Carey na voz, que não são precisos numa peça destas. Bruno Galvão é um Pilatos exigente e preocupado; Bernardo Lima desenterra uma voz impossível para Caifás; Hugo Rendas farta-se de gozar no seu Herodes e transmite perversidade à plateia – só precisa de melhorar um pouco a dicção; e Carlos Martins, no papel de Pedro, presenteia-nos com um tenor de grande potencial e a que deveremos estar atentos no futuro.

A assistência era manifestamente a de Jesus La Féria Superstar. Não importa estarmos perante uma ópera-rock ou o seu equivalente e não numa produção inocente como Música no Coração – as senhoras e senhores de idade enchiam a casa quase por completo, interrompendo algumas peças com aplausos quando havia uma ou outra proeza vocal mais espampanante. Se, por um lado, isso me irrita, confesso algum gozo ao ver senhoras na casa dos sessenta e tais, muito avozinhas, a porem-se de pé num salto e a bater palmas, entusiasmadas. Mesmo admitindo alguma atitude acrítica por parte de uma audiência maioritariamente de convertidos, alguma coisa mudou em Portugal, e foi para melhor. Agora venha daí Um violino no telhado, que já se anuncia.

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