9 de dezembro de 2006

Da problemática do aborto (II) - Das raizes da legalização

Ficámos então no final do século XIX: a prática do aborto estava proibida na generalidade dos países. Vamos agora ver como, um século depois, o aborto foi legalizado em muitos países.

Nos finais do século XIX, apesar de proibido e na prática, o aborto era praticado clandestinamente – às vezes até de uma forma mais ou menos pública – por todas as mulheres que o quiesessem. Era um pouco a imagem dessa época vitoriana: públicas virtudes, vícios privados! As histórias e imagens que todos guardamos, de abortos praticados em locais imundos, por métodos não-ortodoxos e por pessoal não qualificado, provêem essencialmente desses tempos, no final do século XIX e início do século XX. Nessa altura, efectivamente, prática do aborto era abjecta e associava-se a uma elevada mortalidade materna que atingia, maioritariamente, as classes mais desfavorecidas. Com isto não quero dizer que actualmente não se façam abortos “clandestinos” nestas condições, claro que fazem. Mas, tudo indica [polémico e não demonstrado, claro] que são a minoria e não regra.
Com o avançar do século XX esta situação foi-se agudizando. Por um lado, o reconhecimento das liberdades individuais e a aceitação da emancipação sexual, levou a que o acto sexual deixasse de ser visto apenas como um mero acto de reprodução mas antes como uma intima manifestação da sexualidade inerente a qualquer indivíduo. Por outro lado, o progressivo acordar da consciência social das sociedades ocidentais obrigava a olhar – e tentar resolver – o drama das mulheres que se viam obrigadas a recorrer ao aborto em condições sub-humanas.
É nesta altura, em meados do século XX, que se dá clivagem definitiva entre a Ciência e a Igreja. Em primeiro lugar, com a introdução da pílula anti-conceptiva, assume-se em definitivo – moral e socialmente - que o acto sexual não está apenas ligado à função de reprodução. A Igreja nunca aceitou integralmente este conceito. Por outro lado, o avanço dos conhecimentos científicos levam a admitir, e a postular, que nas fases iniciais do embrião humanos não existe verdadeiramente vida e que existirão acontecimentos na evolução do embrião/feto que podem ser as marcas reais do verdadeiro início da vida. A Igreja também nunca aceitou este postulado e manteve o dogma que "a vida humana começa no momento da concepção".
Estavam assim criadas as condições – sociais, morais e científicas – para que o aborto fosse permitido, de forma livre ou com algum condicionamento. Em termos jurídicos, a ausência de vida/personalidade jurídica do embrião e o bem maior da liberdade de decisão da mulher, permitem as novas leis. Pouco a pouco, foi o que foi sucedendo, e um dos primeiros a permitir o aborto foi a URSS, com Lenine em 1920 (embora Estaline o tenha temporariamente proibido, na altura da Segunda Guerra Mundial, para promover o aumento da natalidade). Destaco os principais marcos da legalização do aborto: Suécia, 1938 (aborto por razões médicas, humanitárias e eugénicas); Grã Bertanha, 1967 (Abortion Act – aborto condicionado até às 24 semanas); EUA, 1973 (Decisão Roe vs Wade – aborto livre no primeiro trimestre); Suécia,1974 (aborto livre até às 12 semanas); França, 1975 (aborto livre até às 12 semanas); Alemanha 1976 (aborto condicionado no primeiro trimestre). Actualmente o aborto é livre – isto é a pedido da mulher – ou sujeito a condicionamento mínimo, durante algum tempo da gravidez, em mais de 60 países.

Eis o fim do segundo capítulo. Acredito que as razões que fundamentaram a legalização/despenalização do aborto foram essencialmente de raiz social e jurídica, apoiadas nalgumas bases científicas. Aceito os fundamentos, admito as decisões. Mas deixo uma pergunta para o próximo texto: podemos saber quando começa verdadeiramente a vida?

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