9 de dezembro de 2006

Da problemática do aborto (I) - Das raizes da proibição

Este será o primeiro de uma série de pequenos textos – espero eu! – onde explicarei a minha visão sobre a problemática da despenalização da IVG (aka aborto). Espero ser ordenado e conciso ao explanar as minhas ideias. Não espero “converter” ninguém, nem é esse o meu objectivo.

Este primeiro post trata só dos aspectos históricos desta questão, nomeadamente da sua proibição, nos quais me parece existir muita confusão. Neste aspecto específico, a tese que defendo é que a proibição ou condenação moral do aborto não é um costume antigo e nunca foi uma imposição da religião. A este propósito, lembro o seguinte:

"Nem sempre se tem em conta que as leis que proíbem o aborto na maioria dos Estados são relativamente recentes. Essas leis, que em geral proíbem o aborto consumado ou tentado em qualquer altura da gravidez salvo quando é necessário para salvar a vida da grávida, não têm origem em tempos remotos. Antes, essas leis foram aprovadas, na maior parte dos casos, nos finais do século XIX..." (Roe vs Wade. Supremo Tribunal de Justiça dos E.U.A. 1973.)

De facto, durante milhares de anos – na Antiguidade Clássica e Idade Média- o aborto era uma actividade “socialmente aceite, moralmente reprovável” mas apenas marginalmente praticada, isto devido essencialmente ao elevado risco que acarretava para a mulher. Nesses tempos, e desde sempre, o modo mais comumente utilizado para evitar filhos indesejados era o infanticídio e o abandono. [e ainda é usado, vide China]
Na Idade Média a própria Igreja tinha uma posição algo neutra sobre o assunto, e o seu alvo de combate continuava a ser o infanticídio. São dessa altura os pensamentos de S. Agostinho - que comparava o feto não formado «às folhas que não tinham frutificado» - e de S. Tomás de Aquino, que teorizou que «a alma incorporava muito depois da concepção, quando o feto tivesse já adquirido forma humana completa». Resta dizer que ninguém sabia muito bem a altura exacta dessa incorporação. Esta tese, chamada de hominização tardia, foi durante séculos amplamente aceite. A posição oficial da Igreja sobre o assunto – seguida habitualmente pelas leis civis - foi expressa no Concílio de Viena, em 1312: só existia aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana, isto é depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. Na prática, o aborto era consentido durante todo o primeiro trimestre.
E assim se permaneceu durante muito tempo: aborto permitido mas pouco praticado, pelo risco de vida da mulher. Só no final do século XVIII, com os avanços da medicina, a prática do aborto se generalizou.
Foi só no século XIX que surgiram as leis que proíbem explicitamente o aborto em qualquer circunstância e estas surgem, não por imposição religiosa, mas no contexto dos avanços científicos e do reconhecimento dos direitos humanos que ocorreram nessa altura. De facto, é com Berry (1843) que se inicia a descoberta do processo de reprodução e concepção, tal como é hoje conhecido, e é nesta evidência que se baseia o conceito de que "a vida humana começa no momento da concepção", posteriormente aceite pela doutrina da Igreja: em 1869, o Papa Pio IX repudiou a teoria da hominização tardia e declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento.
E é assim que, por pressão da comunidade científica, se inicia o movimento para a proibição do aborto, enquadrado noutros movimentos de direitos humanos que decorreram nesse século - abolição da escravatura, abolição a pena de morte, sufrágio universal – e hoje universalmente aceites. Por fim, foram os relatórios da American Medical Association (1857 e 1870) que estabeleceram as bases para a proibição do aborto: em 1861 o parlamento inglês baniu o aborto (Offences Against the Person Act) e nos anos seguintes foi proibido praticamente em todos os países.

Assim termino, por hoje. Desta forma acredito que a proibição do aborto nunca assentou em costumes arcaicos ou dogmas religiosos. Antes foi o resultado “natural” dos avanços científicos e dos movimentos dos direitos humanos que ocorreram no século XIX.

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