Ouvia vagamente as escolas de samba a ensaiarem, enquanto me deliciava com uns casadinhos de camarão maravilhosos e me limitava a viver aquela cidade em modo nonchalance. Parecia um bocadinho de Portugal mas em fundo tropical. Uma pérola colonial.Confesso, tenho uma relação de amor mal resolvida com este país. Falta-me ir mais vezes lá. Sinto-me em casa e aconchegada. Se forem ao Brasil, evitem o Nordeste e marchem direitinhos a Paraty.
Por tudo isso, achei esta crónica linda . Igualmente me contaram estas histórias do reizinho. O site que a providencia, fantástico. ESTE .
Falta-nos um site de amor a Lisboa como este...
Passo a transcrever:
Affonso Romano de Sant'Anna
Foto de Daniel R. Carneiro |
De repente, dei-me conta de que Sua Alteza d. João de Orleans e Bragança estava andando ao nosso lado, pisando aquelas pedras irregulares e desequilibrantes de Paraty.
Aliás, ele mora em Paraty. E lá vai ele com a Sua/Nossa Alteza Teresa (de Sousa Campos), andando entre os populares, cumprimentando pessoas na porta de casas e bares, apoiado discretamente numa bengala. Ajudo-os a escalar aquela muretinha de meio metro erguida para impedir que a maré cheia invada a igrejinha ali defronte. E enquanto vai anoitecendo somos umas cem pessoas caminhando para dentro da Igreja de Santa Rita para ouvir um concerto, onde a pièce de resistence será "As quatro estações", de Vivaldi.
Alguns minutos antes, Joãozinho, o príncipe, já nos falava de Paraty com tal entusiasmo que, ao ouvi-lo, só nos resta fazer a mochila, armar a tenda ou mudar para lá e virar uma das pedras tombadas da cidade. Ele fez isso. Seu pai fez isso. Outros estão fazendo isso. De uma cidade colonial, Paraty está virando uma cidade real. Real em múltiplos sentidos.
- Uma Petrópolis à beira-mar?
Imagine que até 1960 Paraty tinha apenas 3.046 habitantes. Havia ficado esquecida ali junto à Serra do Mar durante uns 200 anos. Com a abolição da escravatura, esvaziou-se mais. Mas teve um tempo em que possuía sete valorosos fortes para guardar suas riquezas contra o ataque dos piratas, que vinham ávidos atrás do ouro e dos diamantes que desciam pelos caminhos das Gerais.
Hoje quando a vida pelas bandas de Rio e São Paulo está perigosíssima, quando o famigerado "crime organizado" amedronta nossas cidades, gerido até mesmo de dentro de nossas próprias penitenciárias - como estarrecedoramente publicam os jornais - fico pensando se não estamos vivendo um clima semelhante àquele dos séculos XVII e XVIII, quando corsários ficavam à espreita entre Paraty e Cabo Frio, assaltando as embarcações ou mesmo invadindo e saqueando as cidades, como hoje os marginais fazem, nos humilhando a todos.
Lá vem, por exemplo, o capitão francês Duclerc, em 1710, com cinco navios desembarcando em Guaratiba, seguindo depois pelas cidadezinhas da costa, pilhando e batalhando nas vielas, rumo a Paraty. Lá vem Duguay-Trouin, que em 1711 saqueia o Rio com seus seis mil homens e 17 navios, levando como troféu para Luiz XIV o sino da Sé do Rio de Janeiro.
Tento esquecer isso. Afinal o ambiente no interior desta igrejinha não podia ser mais lindamente simples: iluminação à vela, e aqueles altares com colunas gregas barrocamente revestidas. Dizem que Lúcio Costa gostava especialmente deste frontão, destes altares, destes cunhais em cantaria.
Como preâmbulo, a Orquestra Pró-Música executa outras peças. Que bela acústica tem essa igrejinha do século XVIII. Como a plasticidade dessa música se amolda à essa arquitetura colonial barroca. Até mesmo este intermezzo da "Cavalaria Rusticana", de Mascagni, soa bem aqui.
É inevitável a lembrança. Músicas e perfumes levam-nos em viagens pelo passado. E estou aqui, mas estou também na minha adolescência ouvindo esse intermezzo, que era tocado enquanto as majestosas cortinas daquele majestoso Cine Teatro Central iam se abrindo para começar uma corriqueira sessão de cinema.
Houve um tempo em que um filme era apresentado com um ritual digno de uma ópera, de um grande espetáculo. As cortinas iam se recolhendo e as lâmpadas do teatro iam se apagando, se descolorindo até a escuridão, de onde emergia a luminosa tela.
Essa igrejinha é da mesma época em que viveram Mozart e Vivaldi. Esse concerto para clarineta de Mozart, portanto, está soando há uns 200 e tantos anos. Há uns 200 e tantos anos estão soando esses violinos de Vivaldi.
- Estou em Viena, onde viveu Mozart e onde morreu Vivaldi?
Não, estou em Paraty, cidade de nome indígena significando "peixe da família das tainhas", ouvindo uma orquestra em que o maestro tem também sobrenome indígena - Tibiriçá.
Então, vou consultar coisas e aprendo que naquela região viviam os índios guaianás.
- Où sont-ils? - perguntaria Villon.
E Bandeira responderia: "Estão todos dormindo, dormindo profundamente".
Aliás, pior, foram dizimados, razão pela qual, aprendo num livro de Maria Eliza Carrazoni, que dona Maria Jacome de Melo, fazendo uma campanha em 1646 para que parassem de matar índios, doou terreno para a construção da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. E vai ser outra lendária mulher de Paraty, dona Geralda Maria da Silva, que no século XVIII solta a grana para a construção da matriz que acolhia "todas as camadas sociais do município durante o Império". Dizem que ela era filha de um corsário, e queria com essa obra expiar os pecados da família.
Índios. D. João. Música. Barroco. América.
Este Vivaldi que está soando aqui, este Vivaldi que era padre, mas não rezava missa, este Vivaldi que viajava com sua amante Anna Guiraud, este Vivaldi que escreveu 550 concertos, sendo 230 para violino, este Vivaldi que deixou 20 óperas tematizou numa delas a vida de um índio: "Montezuma". Foi encenada no Teatro Sant’Angelo, em Veneza, em 1733, contando o trágico encontro do conquistador Hernan Cortès com o chefe indígena, que foi traído e teve seu reino aniquilado.
A história é uma ópera. Com solos, sangue, árias, coro e muita esperança. A música (como a crônica), no entanto, vai terminar.
Vivaldi - maestro di violino - vai descrevendo didaticamente os acordes que lhe sugerem a primavera, o verão, o outono e o inverno. As estações se sucedem. Sucedem-se os corsários e as tribos indígenas. O ouro muda de mão.
A noite nos espera. As pedras das ruas de Paraty encaminham nossos passos. E o mar e a música sobrevivem às estações.
O GLOBO - 24/01/2001
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