6 de janeiro de 2006

Fumos vários e afins

A nova Lei espanhola sobre tabaco desencadeou um ataque de tosse alérgica à Rititi, personagem ilustre da blogosfera portuguesa. O seu texto, no qual se lhe reconhece a proverbial verve, constitui um objecto de análise interessante, por paradigmático de algumas falácias e ilusões que moldam (e por vezes toldam) o nosso raciocínio. (A mim também, nesta e noutras áreas, provavelmente, mas não é de mim que falo hoje.)

Começa a senhora por uma assunção inflamada da sua condição de fumadora, mas vai logo dizendo que é também pagadora de impostos. Percebe-se obviamente a ideia – para não a acusarem, como de costume, de que são os não fumadores quem vai pagar o tratamento das doenças dela causadas pelo tabaco. Concordarei com ela quando o dinheiro dos impostos sobre o tabaco forem integralmente para o Serviço Nacional de Saúde. E, mesmo assim, não vão dar para pagar os estragos causados pelo tabaco à sociedade em geral. Quem tiver dúvidas veja a partir de aqui, por exemplo. Portanto, quanto a tabaco e impostos estamos conversados.

A senhora explora em seguida a dualidade Mulher Íntegra / Estado paizinho, hipócrita e moralista. Nada como pintar tudo em preto e branco, sem nuances de cinzento. Há quem chame a isto demagogia e/ou populismo. Eu chamo-lhe, mais prosaicamente, desonestidade intelectual.

No texto segue-se a fase Corto Maltese, que fica sempre bem numa tirada teatral destas. A Rititi prevê morrer de (i) amor trágico-cómico (o que raio que quer que isso seja), (ii) atentado terrorista, (iii) acidente de automóvel e, muito trendy, de (iv) gripe aviária ou de (vi) pena que, presumo, seja uma variante mais ligeira da anterior. A nuance do marinheiro inglês mais um conjunto de características poético-canalhas a maquilhar o estilo de vida compoem o retrato da mulher indómita e de olhar no horizonte. Há-de haver quem acredite nestas fantasias. Lamentavelmente estas hipotéticas formas de morte mais ou menos românticas são muito improváveis (da primeira, admito, até eu gostava). É transparente nesta senhora a observação de um autor, salvo erro francês, de que não me recordo agora do nome: “Eu sei que vou morrer mas não acredito nisso”. A verdade é que todos nós temos uma altíssima probabilidade de uma morte lenta e com uma razoável dose de sofrimento, pese embora a evolução dos cuidados paliativos. A Rititi diz que, e cito, irá “padecer [de] doenças crónicas, aneurismas, bronquites, AVC, alergias, gastrenterites, cancros, uma pele de merda, noites de tosse e dentes amarelos”. Mas ela, no fundo, sabendo que vai ser mesmo assim, não interiorizou nenhum destes cenários – que é como quem diz, não acredita realmente que algumas destas coisas lhe irão muito provavelmente acontecer mesmo. E, obviamente, arruma para o canto o facto de que o tabaco lhe aumenta brutalmente a probabilidade destas avarias todas. Porque as probabilidades de algo correr mal são, como sabemos e por definição, para os outros.

O resto do texto não é mais que a reprise circular do que tinha sido afirmado antes, de modo mais megafónico pour épater le bourgeois. A mim, lamento, não me épate por aí além: pelo contrário. É sempre constrangedor ver uma pessoa inteligente a fazer figuras tristes.

E vem-me inevitavelmente à ideia o grito de alma do Besugo, homem que respeito mais cada dia que passa e cada texto que escreve. Ele, que diariamente leva na cara com o outro lado da vida que a Rititi tenta, sem sucesso, ocultar, sabe perfeitamente o que está em causa. Goste-se ou não, os efeitos deletérios do tabaco são de tal intensidade e calibre que não existe hoje nenhuma justificação racional para o seu consumo. Não é uma questão de fé: é simples matéria de facto.

O tabaco desencadeia uma dependência perfeitamente equivalente às outras, apenas socialmente menos destrutiva e, como tal, tolerada. Grande parte dos fumadores racionaliza a sua dependência através de um conjunto de argumentos sobreponíveis aos do heroinómano e de dependentes em outras substâncias. Quem lhes chama a atenção para o disparate é, no mínimo, intolerante e, no máximo, uma besta. Tudo serve, na verdade, para justificar a dependência.

Que fazer, então? Não vale a pena ilegalizar, do mesmo modo que não faz sentido a ilegalização de nenhuma das outras drogas. Não faz sentido marginalizar, claro – mas se alguém quiser fumar guarde o seu fumo para si e não mo imponha, por favor. E seria uma imoralidade monstruosa negar assistência a um fumador ou ex-fumador por problemas de saúde associados ao tabaco. A uma pessoa no chão não se bate: ajuda-se a levantar.

Faz sentido desglamourizar o tabaco e acabar com o seu marketing. Faz sentido investir todo o dinheiro possível em programas de ajuda de cessação tabágica. E, sobretudo, faz sentido educar e proteger as crianças, para que, no maior número possível, nunca fumem – dizer que é preciso experimentar tudo não é só uma imbecilidade: é, no caso das crianças, uma tentativa de assassínio. Dizer que as crianças têm o direito de escolher quando forem mais velhas é negligência criminosa usada pelos que estão agarrados à passa para desculpar a sua própria dependência. Estou a ser uma besta? Há vidas inocentes em jogo. Não peço desculpa.

E é por isso que, se alguma vez, eu vir alguém a oferecer um cigarro ao meu filho, lhe fodo os cornos de tal maneira que a criatura durante muito tempo irá precisar que alguém lhe meta o cigarro nos intervalos das ligaduras. E depois digam-me que sou intolerante a ver se me importo.

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