2 de dezembro de 2005

afinal não estava grávida, ou a propósito do mito de catarina



publicou o 'público' esta semana a 'confissão' dum médico legista que participou na autópsia ao corpo de catarina eufémia.
de acordo com o clínico, agora com 87 anos, catarina eufémia não estaria grávida aquando do seu assassinato.

com base nesta confissão, com 51 anos de atraso, teceram-se uma série interminável de considerações sobre o mito criado em redor da morte de catarina.

reporta o 'público' uma série de confirmações sobre as circunstâncias da sua morte e outras tantas considerações sobre os mitos criados em redor da mesma, a saber:

1. catarina não estava grávida.
2. catarina estava com um dos seus 3 filhos ao colo
3. catarina não era militante do pcp
4. catarina era uma camponesa empurrada pelas más condições económicas para a frente de uma luta.
5. catarina terá respondido à pergunta do feitor (representante do patrão retido em casa por doença) que 'o que pretendiam' era trabalho e pão.
6. catarina foi derrubada pelo tenente carrajola com uma estalada.
7. catarina terá respondido à agressão do tenente com a frase ' já agora mate-me'
8. o tenente carrajola disparou 3 tiros à queima-roupa (com a espigarda literalmente encostada ao corpo de catarina).

há aqui uma série de questões que gostava de comentar de um modo simples:


a primeira resulta do facto de que alguém que guarda (sem razão que o justifique) um segredo durante 51 anos e acha que só no final da sua vida o pode divulgar, me merecer pouco crédito.
é-me irrelevante saber se a catarina estava grávida ou não.
o assassino que a matou não deve ter tido isso em ponderação e, mesmo que o tivesse, tal coisa não iria alterar a sua atitude.
mas, conhecendo a forma como o regime actuava perante os médicos, nada me espantaria que o texto decorrente da autópsia não corresponda à verdade, do mesmo modo que a 'confissão' de alguém passados 51 anos.
mas, repito, tal é irrelevante.

a segunda tem a ver com o facto da catarina não ser militante do pcp, partido que se terá apropriado do exemplo e sacrifício da camponesa de baleizão:
só quem não faz a mínima ideia da forma como os partidos comunistas e/ou socialistas se organizavam na clandestinidade é que pode associar a condição de militante nesse periodo com o conceito que hoje temos de militante.
os militantes dos partidos e organizaçoes comunistas durante a clandestinidade eram, por tazões óbvias de segurança, muito poucos e apenas 'ascendiam' a essa condição depois de muito trabalho e muitas provas de confiança.
em rigor, na maioria dos casos, nem os membros de organizações de juventude, de trabalhadores ou de estudantes de partidos comunistas, eram considerados como 'militantes' do partido, mas apenas das suas organizações 'subsidiárias'.
as reivindicações de 'militância' da catarina atingiram o seu mais caricato momento, quando a udp e o pcp (r), por força de uma simpatia manifestada pelo viuvo, reivindicava que se a catarina fosse viva seria sua simpatizante.

se há coisas que eu tenho que admirar no pcp (do qual, como sabem, estou longe de jamais ter sido simpatizante) é o facto de nunca ter feito da actuação dos seus membros uma bandeira de heroicidade e sempre ter deixado esses 'louros' para 'o povo trabalhador' (por muito que se saiba que muitas das lutas travadas não tinham repercussões para além do restrito ambiente em que se desenrolavam (por força da sua incapacidade de divulgação) e de algumas se resumirem a actos dos seus próprios membros.
o exemplo da catarina mostra isso.
e o pcp nunca a apresentou como 'militante comunista' (no sentido restrito do termo que agora se pretende de 'militante do pcp'), mas sim como uma mulher trabalhadora, exemplo da revolta camponesa dos anos 50.
aliás, o pcp sempre apresentou os acontecimentos de baleizão como integrada numa revolta mais vasta, que começou com uma manifestação de jovens trabalhadores agrícolas em pias, em março de 54, e que rapidamente alastrou a aldeia nova de são bento, serpa e outras terras da 'margem esquerda' e que levou a greves em imensas localidades, forçando os latifundiários a contratar trabalhadores, principalmente, no algarve e beiras.
o que levou o grupo de 14 mulheres onde estava catarina, a dirigir-se àquele campo para dissuadir os recem chegados trabalhadores a não iniciarem o trabalho.

o que me resulta desta história da confissão do médico legista, é uma espécie de tentativa (deliberada ou não, é irrelevante) de aliviar o acto de bárbaro assassínio de uma pessoa que luta por 'pão e trabalho'.

o que me resulta desta história é 'vulgarização' de alguém que é assassinado com 3 tiros de arma encostada ao corpo.
é procurar 'diminuir' o exemplo do acontecimento com a afirmação de que 'afinal não estava grávida' e que o mito criado à volta disso é uma invenção mistificadora.
o que me resulta desta história é o assassino carrajola jamais ter sido julgado por um assassinato a frio.
o que me resulta desta história é que ainda há muita 'consciência pesada' a necessitar de alívio.
o que me resulta desta história é que fariam um muito melhor trabalho e prestariam um muito melhor serviço à 'informação' se estudassem, e escrevessem sobre o movimento camponês de 54 no alentejo.

mas isso deve dar muito mais trabalho...

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