Uma Nova Cultura
Existe em Portugal uma inteiramente nova cultura de afectar a riqueza e a suposta proveniência de “boas famílias”. Agradecer com muito obrigado é povo, chic é agradecer com “obrigadíssimo”; as negações já não se reforçam com o “de certeza absoluta”, mas sim com o “de todo”; pronunciar diminutivos em “inha” é demasiadamente familiar, quase provinciano, aliás, pronunciar diminutivos é pobre, o que vale são os superlativos: tudo deve ser “lindíssimo”, “interessantíssimo”, “elegantíssimo”; na televisão, as personagens das telenovelas portuguesas aparecem sempre com roupas acabadinhas (“acabadíssimas”) de comprar na loja, o que de resto é inteiramente conforme com a artificialidade sensaborona das interpretações dos actores, da concepção dos cenários (as casas e os escritórios acabadinhos de estrear, ...) e de tudo o mais. É possível um episódio do “Diário de Sofia”, produção nacional realizada pela televisão pública, portanto, serviço público, ser passado quase na íntegra numa... loja de roupa de marca!...
Outra expressão desta cultura é a evolução quantitativa dos nomes. Na minha escola primária os alunos tinham todos o nome próprio, o apelido da mãe e o apelido do pai. Alguns tinham um segundo nome próprio ou dois apelidos do pai. Quase ninguém tinha mais do que isto, quatro nomes. A pouco e pouco, toda a gente tinha de ter dois nomes próprios, o apelido da mãe e os dois apelidos do pai. Mas como as mães não são menos mães do que os pais são pais, passou-se a colocar mais tarde os dois apelidos da mãe, ou seja, passou a ser acrescentado o apelido da mãe da mãe aos filhos. Portanto, seis nomes. Mas como toda a gente tem seis nomes, por um lado, e como os pais contemporâneos têm quatro apelidos, por outro, passou a colocar-se aos filhos, para além dos dois nomes próprios, nunca menos do que 5 apelidos. Para facilidade de memorização e, principalmente, porque parece chic, os apelidos passaram a ser unidos ao pares por um hífen. Mas dois apelidos ligados por um hífen são um só apelido. Portanto, um nome com seis apelidos transforma-se num nome com três apelidos. Mas se são só três apelidos, na geração seguinte pode adicionar-se mais um (par) de apelidos e portanto chegamos aos oito apelidos e por aí fora... como no tempo dos reis e rainhas.
O sentimento que fundamenta e serve de motor a esta nova cultura é a inveja. Não basta demonstrar que se é mais rico do que os outros para obter satisfação. É necessária também a garantia de que se infligiu inveja nos outros. E essa inveja originará nos outros as acções, normalmente de compra e de ostentação, que demonstrem que estes afinal ainda são mais ricos que os primeiros e ainda têm mais motivos para instilar a inveja do que estes. Depois, é a espiral de exageros e ridículos. É uma espiral que colhe tudo e todos e que se expande centrifugamente. Reflexos disto são os fenómenos suburbanos do hip-hop e do tuning.
Ao contrário do rap, que nasceu pela necessidade das minorias exprimirem os seus descontentamentos e as suas críticas, o hip-hop nasce para que as minorias possam exprimir o facto de serem... ricas. Não há teledisco de hip-hop que não apresente gente a ostentar necessariamente o seguinte rol de elementos: (a) um carro desportivo parado em frente a uma (b) mansão onde se realiza uma (c) festa com gente com (d) roupas caras e carregadas de (e) fios de ouro. A própria (f) exuberância física das pessoas que festejam e dançam é em si mesmo objecto de ostentação e serve o objectivo de infligir inveja. De facto, não só a exuberância física mas as próprias pessoas são objecto de ostentação nesses telediscos. A atitude típica do hip-hoper é a do desafio, qualquer coisa como: “’tás a olhar para mim mas eu é que olho para ti de cima a baixo, porque eu até posso vir do bairro social ou directamente das barracas mas tenho mais dinheiro do que tu e posso comprar e ostentar muito mais do que tu, olha para o meu carro estacionado com os vidros abertos muito mais caro que o teu e com uma aparelhagem muito mais poderosa que a tua e as minhas duas namoradas com mamas muito maiores que as da tua... e se ainda conservo os meus adornos suburbanos é porque sou tão rico que até me posso dar ao luxo de ter um estilo completamente foleiro só porque... me apetece”.
O tuning é outro dos melhores símbolos da nova cultura de ostentação: não sendo possível comprar um carro rápido, bom e caro pelo simples facto de não haver dinheiro suficiente, vai-se todos os meses adquirindo elementos para o carro que sugiram que este, afinal, não é do século passado, com uma motorização vulgar e... barato. O resultado é um exagero visual que não consegue esconder a substância da coisa (o carro inicial era pobre) mas que demonstra escancaradamente o desejo do dono do carro pobre de ser, afinal, rico.
É preciso ainda notar que esta cultura embora competitiva não é meritocrata: em lado algum é ostentada a origem da riqueza (isto assumindo que a riqueza, de facto, existe). Se o dinheiro vem do sucesso profissional ou da progressão na carreira pela mera passagem do tempo, se vem do talento pessoal ou da cunha do parente, se é o resultado de uma profissão exercida honestamente ou da exploração de uma qualquer corrupção mais ou menos higiénica – nada disto interessa: o que interessa é que se possa ostentar riqueza. É a ostentação pela ostentação, a ostentação como fonte de um deleite fútil que procura a satisfação na inveja dos outros.
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