5 de abril de 2005

A morte de Terri

É lícito retirar a sonda nasogástrica que mantém viva uma pessoa pelo facto de lhe dar de comer e de beber?

Esta tem sido uma das perguntas-chave do caso Schiavo. Infelizmente esta é também uma pergunta que porventura não se aplica na presente situação. Num magnífico documento recentemente publicado entre nós, de leitura absolutamente obrigatória, descrevem-se os critérios definidores do estado vegetativo persistente (EVP) e as implicações éticas e filosóficas das diversas atitudes que podem ser tomadas. Nesta, como em muitas áreas, não há verdades absolutas.

Tomemos as definições de EVP, retiradas do documento referido:


Definição de EVP pela Multi-Society Task Force

DEFINIÇÃO

· o estado vegetativo é uma situação clínica de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral

CRITÉRIOS

· total ausência de consciência do eu ou do ambiente circundante; impossibilidade de interacção com o próximo

· ausência de respostas sustentadas, reprodutíveis, intencionais e voluntárias a estímulos visuais, auditivos, tácteis ou nóxicos

· ausência de compreensão ou expressão verbais

· vigília intermitente, ciclos sono-vigília

· preservação das funções hipotalâmicas e autonómicas suficientes para a sobrevivência. Incontinência urinária e fecal.

· preservação em grau variável dos reflexos dos nervos cranianos (pupilares, óculocefálicos, córneos, óculo-vestibulares, de deglutição) e espinomedulares


Mas no documento há outra definição, igualmente perturbadora:

Definição de EVP pelo Royal College of Physicians of London

SÃO NECESSÁRIOS TRÊS CRITÉRIOS CLÍNICOS

1. Ausência de evidência de consciência de si ou do ambiente. Sem resposta volitiva a estímulos visuais, auditivos, tácteis ou nóxicos. Sem evidência de compreensão ou expressão da linguagem

2. Ciclos de encerramento e abertura dos olhos, simulando o sono e a vigília

3. Funções do tronco cerebral e do hipotálamo suficientemente preservadas para manutenção da respiração e da circulação autónomas

OUTRAS CARACTERÍSTICAS CLÍNICAS

1. Incontinência urinária e rectal. Pestanejar espontâneo e reflexos pupilares e corneanos mantidos. Resposta conjugada ou desconjugada ao teste calórico com água gelada

2. Ausência de nistagmo em resposta ao teste calórico com água gelada. Sem fixação visual, sem seguimento de objectos em movimento com os olhos, sem uma resposta à ameaça

3. Pode exibir movimentos ocasionais da cabeça e olhos em direcção a um som ou um movimento, assim como mover o tronco e os membros sem objectivo definido. Pode exibir um mioclónus à ameaça. Pode sorrir ou produzir esgar à dor provocada. Pode apresentar movimentos circulares dos globos oculares.


Atente-se nestes critérios. Muitas das características destes pacientes simulam vida consciente. Não são o equivalente de uma vida consciente. A dúvida sobre se isto é estar vivo é precisamente uma das dificuldades filosóficas que nos confronta neste caso. Não há uma só resposta.

É lícito questionarmo-nos sobre se a manutenção de uma vida nestas circunstâncias não corresponde a um encarniçamento terapêutico a que os profissionais de saúde tentam fugir, mas que os tenta a cada passo. Surge, neste ponto a dúvida - o que é a alimentação por sonda nasogástrica? Um tratamento médico ou o mais elementar dos gestos humanos? Também aqui não existe uma resposta linear: afinal a morte por inanição foi o modo de exitus da humanidade através dos tempos - a sonda nasogástrica é uma invenção comparativamente recente e é, seguramente, um dispositivo médico.

Qual é, assim, a diferença entre desligar um ventilador que priva um paciente de ar para respirar e "desligar" uma sonda nasogástrica que priva um paciente de comer e de beber? Creio que a diferença está no tempo que dura a própria morte - e o acto de morrer ser-nos-á sempre insuportável, mesmo quando constitua o mal menor. Uma morte lenta, naturalmente, causa-nos uma reacção ainda mais aguda. Nenhuma destas situações, contudo, pode ser classificada como eutanásia, sendo esta uma das maiores confusões que tem inquinado a discussão.

No caso Schiavo estão duas visões em confronto: a do marido e a dos pais da rapariga. Dispenso-me de apresentar os argumentos de uns e outros, e assumirei que ambas as partes se encontram de boa fé defendendo o que consideram justo. Recomendo vivamente a leitura deste excelente editorial do New England Journal of Medicine, que apresenta um retrato transparente desta história e poderá ajudar a fazer alguma luz sobre os factores em causa, incluindo o circo miserável feito em volta da situação.

Qual a minha opinião, afinal? No caso presente tendo a favorecer o deixar a Natureza seguir o seu curso. Se há um Deus, peço-Lhe para nunca me ver confrontado com uma situação destas num ente querido. Se, por desgraça, isso acontecer, sei que saberei assumir o meu papel. Qual será? Aquele que o coração, mais que a razão, me ditar no momento.


Deixo o meu profundo agradecimento à Isabel Galriça Neto, uma das mais lúcidas pensadoras e praticante dos cuidados terminais em Portugal e no mundo, por me ter chamado a atenção para os dois textos que cito. Se aqui disse algum disparate a responsabilidade é integralmente minha.

Sem comentários: