Os Tosetto morrem muito. De 1977 para cá morreram, pelas minhas contas, quatorze. Sábado morreu mais um, ou melhor, uma. Por causa dessa morte, tive de ir à Quarta Parada, onde a família mantém um jazigo (nós dizemos, sei lá por quê, "campa"), mandar exumar o corpo do meu pai. Que estava lá havia, precisamente, vinte e um anos e vinte dias.
Enterrar e desenterrar pessoas custa dinheiro e paciência com a burocracia. Para desenterrar meu pai tive que entrar em contato com um primo que não via há uns vinte anos, visto que esse primo é o guarda da campa. Precisei de fotocópia da identidade dele, de fotocópia da minha identidade, da certidão de óbito do meu pai, da certidão de óbito da minha avó (a dona original do jazigo) e da comunicação de morte da pessoa a enterrar. Sem isso, meu pai continuaria lá. Providenciada a documentação, a paulada: duzentos e oitenta e dois reais e oitenta centavos pela exumação (cerca de cem euros). Assim divididos: R$ 239,55 pela exumação propriamente dita, R$ 10,10 por um misterioso "expediente", e mais R$ 33,15 por uma urna de plástico vagabundo e tampa de isopor para os ossos (se eu quisesse deixar num saco, era de graça). Isso fora a gorjeta pros dois infelizes que têm de fazer tal trabalho: R$ 10,00 para cada um. Dão nota fiscal. Ou melhor: uma "Guia de Arrecadação de Cemitérios".
Tive que testemunhar a exumação. Os dois rapazes, funcionários públicos, queixavam-se da Marta. Fiz-me de solidário. Chovia. Eu os vi retirando as lajes que fechavam a gaveta; estava escuro, mas acenderam a luz. Pude perceber que o caixão tinha se desmanchado, mas que a manga esquerda da camisa, originalmente branca, estava intacta, embora de cor marrom. Perguntei-lhes se o corpo estava desfeito, e o rapaz que ia recolher os ossos disse que sim; para provar, puxou dois ossos escuros, talvez duas costelas, e despejou na urna. Saí dali.
Um dos coveiros me disse: "Nós vimos o caixão que vai entrar. É muito grande, não passa pela boca do jazigo. Vamos ter que alargar a entrada, e escavar as paredes da gaveta". "Bom, digam quanto é." "Nós não podemos fazer, vamos levar lá o rapaz da construtora, ele é quem faz." Eram dez horas, o enterro seria às quatorze. "Bom, então vão logo com isso, para que dê tempo." Meia hora depois, o tal rapaz da construtora apresentou seu preço pela meia dúzia de marretadas que tinha que dar: R$ 450,00. O neto e o filho da morta pagaram, depois de barganhar, R$ 400,00. Mesmo assim, o caixão entrou tombado para o lado esquerdo, e só a custo encaixou na vaga que pouco antes ainda era do meu pai. Cujos ossos enegrecidos, alojados na tal urna, repousavam ao lado de outros (dos meus avós, dos meus tios e tias, do meu primo-afim suicida) na prateleira acima das gavetas.
P. S.: hoje me contaram, não sei se para me animar ou se para me pôr a par do que perdi, que nem todos os ossos ficam; muitos viram pó ou são deglutidos pela bicharia. Disseram-me que sobram os ossos dos braços, as costelas, os das pernas, o da bacia e o crânio. Às vezes resta uma ou outra falange, mas nem sempre. Por isso, esclareceram, as urnas são tão pequenas. Menos ponderável ainda que esses poucos ossos é o que resta nas nossas consciências. Uma lembrança pesa menos que eles, e some tão logo nós mesmos sumimos.
1 comentário:
HISTÓRIA CHOCANTE PORÉM, REVELADORA DE NOSSA REAL CONDIÇÃO.
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