“A toponímia lisboeta tem atravessado fases evolutivas que marcam,
evitavelmente, o espírito de cada época. No século dezasseis predominavam, na
denominação dos sítios e das serventias urbanas, a visão característica dos
locais, e nomes, profissões ou alcunhas dos moradores. Seguia-se o espírito
tradicional do século anterior. O relevo orográfico, a configuração ou a orientação
da rua, a minúcia utilitária ou decorativa, o documento vegetal orientador, a
categoria, profissão, cargo, nome ou alcunha, a natureza dos pavimentos, a instituição
religiosa ou civil, tudo servia de útil referência para o público. Era o
Público quem baptizava e crismava as artérias e os recantos cidadãos, e, como
era ele, o nome era sempre inteligente.
Chega o século XVII. A inteligência começa
a obscurecer-se. Sobre os nomes postos pelo vulgo caiu o influxo da instituição
religiosa, e a corte do céu espalhou-se pelas ruas da cidade nos últimos anos
da centúria, com tal impetuosidade que por pouco os roteiros se arriscam a
parecer urna reedição do «Fios Sanctorum». A toponímia entra a confundir-se e
os Santos Antónios e os São
Franciscos proliferaram, repetindo-se em bairros afastados ou vizinhos dos
templos e dos conventos que os originavam.
Com o século XVIII o exagero
cresceu, e post-terremoto, quando frades e freiras dos bairros excêntricos,
compelidos pela necessidade da urbanização ou tentados pelo lucro, encararam o
negócio do aforamento das cercas e terras atinentes a suas casas, eram já eles
quem nomeavam as novas serventias, impondo ao povo os Santos da sua Ordem.
Sucedeu isso no bairro da Lapa, com as Trinas, e na «Nova Colônia», com os
Beneditinos. O povo começou a ser usurpado do seu direito secular, e para os
alfacinhas começaram as grandes confusões toponímicas.
Com o século dezanove
veio a sanção municipal e a usurpação definitiva da regalia popular. O bom
senso das sinonímias acabava. Começava, em contrapartida, o desconchavo, a
incoerência, a falta de lógica, e, para que não dizer-se, a parvoíce da
homenagem. Os cunhais decorados com um rectângulo preto, passaram a pedestais
de estatuas baratas: rua do Senhor Fulano, travessa do Senhor Cicrano, largo do
Senhor Beltrano. Primeiro foram os generais e os políticos, depois os
conselheiros e comendadores, a seguir Ou escritores, mais adiante aos
revolucionários vagos e uns, ainda mais vagos, cidadãos. Vinte por cento das
pessoas ilustres que se rememoram nos cunhais da cidade, são totalmente desconhecidos
da população. E chegou-se a este estado de coisas. Em vez de nomes que as distingam,
as ruas têm títulos que as confundem. A função designativa perdeu-se,
sacrificada a urna louvaminha sem sentido nem utilidade. O disparate está tão
generalizado que até do espirito das denominações se não cuida. Um exemplo. Há
duas ruas novas em Lisboa que descem do Norte para a estrada dos Prazeres. Por
fundo tem o Cemitério. Formam o cenário obrigatório ciprestes, cruzes e
jazigos.
Sabe o leitor conto se chamam ?
«Gervásio Lobato»
e «André Brun», os dois grandes humoristas portugueses. Os comentários
dispensam-se. Pois os velhos nomes eram evocadores; localizavam, aspectos,
factos e figuras, confidenciavarn minúcias da vida urbana, sugeriam quadros
perdidos, e auxiliavam a investigação. Os de hoje são abstracções sem
significação, homenagens sem alicerce, feitas ao sabor da maré politica.
Oedipo, feito edil, semeia charadas pela cidade, arma logros a cada esquina,
«partidinhas» de bom humor feitas a posteridade. O «João Vaz» de certa rua,
suporão todo que é o nosso grande pintor, o do Grupo do Leão, o apaixonado das
águas tranquilas do Sado. Pois não é. O João Vaz que se comemora ali, é um mestre-de-obras,
construtor ou proprietário, que ergueu o primeiro prédio da serventia. Os
exemplos multiplicam-se. De outros tempos ficaram nomes de uma sugestão impressionante.
Dão-lhe fisionomia, pitoresco, carácter”
Pastor de Macedo e Gustavo Matos Sequeira no livro " A nossa Lisboa"