9 de maio de 2011

Sobre a má-criação


Minhas Senhoras 
Meus Senhores
Antes de mais nada, distingamos. Não se confundir grosseria com má-criação. Ir a uma casa de cerimónia e, na altura do chá, cuspir dentro do bule e assoar-se às torradas, é uma grosseria. Dizer a um cavalheiro, que casou com uma velha ferrugenta por causa do dinheiro, que ela tinha: Esta serpente é que é o asilo de V. Ex.a ? — não é grosseria. Como é a verdade nua e crua, chama-se-lhe má-criação. Sujeito malcriado é aquele que, em homenagem à verdade, esquece as regras de hipocrisia torpe a que se convencionou chamar boa educação. As crianças, que ainda não tiverem tempo de aprender essas regras são o protótipo da má-criação. Assim, qualquer de nós pode estar aflitíssimo numa reunião que, para parecer bem-criado, não se atreverá a perguntar onde é que se satisfazem certas necessidades tudo quanto há de mais naturais. Uma criança gritará logo. Ó mãe, quero fazer chichi.
À sociedade dirá que a mãe não lhe dá educação, mas, ao menos, o petiz não desabafará nas calças o  que lhe oprime a consciência.
Quando a má-criação é cometida por pessoas que são temidas por qualquer razão, chama-se-lhe impertinência e toda a gente a repete como um exemplo de espírito sarcástico. Quando um impertinente leva uma bofetada, todos dizem em coro: Bem feito, para não ser malcriado.
As pessoas bem-educadas são, como disse, de uma hipocrisia torpe. Na rua indagam da saúde de pessoas indiferentes; perdem uma hora a ouvir histórias aborrecidas; respondem a cartas insípidas; felicitam por cartão de visita famílias, a quem no íntimo, não ligam a menor importância; elogiam os insignificantes; estão de acordo com os tolos; mudam de opinião para agradar; atraiçoam os amigos para dizer ámen aos inimigos; mentem trinta vezes ao dia; aturam maçadas com um sorriso nos lábios; vivem, em resumo, uma vida artificial.
Os mal-educados gozam o prazer infinito de dizer a verdade nas bochechas de quem a não espera. Um burro é para eles um burro e vivem libertos da grilheta, que se chama o código da civilidade.
Não gozam dessa estima que os bem-educados buscam grangear pela doblez do seu proceder e do seu pensar. Em compensação, têm sempre dois ou três amigos, malcriados da mesma força, com quem se regalam, divertindo-se à custa da sociedade em que vivem. Estão livres dos importunos, dos educados, dos hipócritas e dos parvos. Vale a pena. "

André Brun, Sem Cura Possível, Prosas Originais e adaptadas, Casa do Livro, Lisboa, 1941

1 comentário:

Luísa disse...

Estou a ver que sou mal educada. E não me aborreço por isso. Pelo menos não fico "empachada" com o que não gosto. :D