9 de abril de 2011

Neptuno e Gustavo Matos Sequeira

Tenho uma profunda admiração por Gustavo Matos Sequeira, um mordaz e culto escritor de Lisboa. Este delicioso diálogo,entre ele  a estátua de Neptuno ,fez-me sorrir e ficar  presa à narrativa ágil e cheia de referências. Como  andamos esquecidos dos grandes intelectuais portugueses!  E passo a transcrever. É longo, mas vale a pena.



Ouvindo o Filho de Saturno…
Entrevista fabulosa com um Deus do Olimpo no Largo de Dona Estefânia
Por Gustavo Matos Sequeira
 Diário Popular, de 22 de Outubro de 1950

Raras vezes passo pelo Largo de Dona Estefânia. Está fora das minhas deambulações habituais. Outro dia, porém, às horas do anoitecer, cruzei-o de Nascente para Poente, embrulhado na rede das minhas costumadas meditações, agora perigosíssimas na lufa-lufa do trânsito alfacinha. Vinha a patronear comigo mesmo, sobre uma ideia em projecto, quando um “psst” intrometido me chamou a atenção. Psstt, pstt…Quem seria a chamar-me? Circunvagfuei os olhos e não topei vivalma. Só um polícia (extraordinária visão) passava apressado em direcção ao Saldanha. E o “psstt” continuava, agora mais estridente. Até que…(e o pasmo parecia que me atarrachava ao chão) dei com os olhos na estátua de Neptuno, erguida a meio do lago, e o tridente a agirar-se no ar. O “psstt” vinha exactamente daquela direcção, e um gesto de chamamento do Deus, acabou de convencer-me. Era ele quem me chamava.
Desvanecido com a confiança do Filho de Saturno ali posto há uns dias (não sei se por castigo), aproximei-me timidamente, da borda do lago e ouvi então, a sua voz, que soava como um marulho de vaga:
-Tenha paciência, acuda-me. Eu tenho passado a vida a obedecer ao “peito lusitano”, força impetuosa, “ a quem Neptuno e Marte obedeceram”, como diz Luís de Camões, mas já não posso mais. Desde o ano 31, antes de Cristo, depois da batalha naval de Actium, em que os romanos me ergueram um templo, que não me deixam ter sossego. E então, desde que os de Lisboa me tomaram à sua conta, tenho andado numa verdadeira peregrinação, com o plinto nos pés, a correr à experimenta todos os recantos da cidade. O senhor e é amigo de Lisboa e deve ser meu amigo. Eu tenho prestado muito serviço a esta velha Olisipo. Livrei-a de temporais, enchi-a de boas águas, presidi à chegada da água de Carenque, e estive nos Barbadinhos quando veio a de Alviela. Tenha pena de mim. Consiga que me deixem agora estar aqui quieto, que já não me mudem mais. Já não me chega o dinheiro para pagar tantas mudanças.
O Deus que diziam falsamente ser irmão de Júpiter (se o fosse outro galo lhe teria cantado) agitava nas mãos húmidas o tridente… lacrimejando saudoso dos golfinhos que outrora o acompanhavam. E eu retorqui-lhe:
-Prometo-lhe solenemente: Vou interessar-me pela sua sorte, magnífico Deus. Um memorial do município onde tenho amigos fiéis, resolverá possivelmente o seu caso. Hei-de conseguir que o deixem quieto de vez, em compensação, conte-me as suas andanças…
Neptuno, descansando no colo o tridente, para dar às mãos uma certa liberdade, nos gestos, espreitou em redor, viu que não andava por ali ninguém e começou:
-aqui onde me vê sou feito de mármore de Carrara,. Esculpiram-me em Itália há cento e setenta e nove anos. Há quem diga que foi Machado de Castro (conheceu-o?) quem me talhou. Vim depois para cá: a gente das águas Livres destinou-me para uma fonte que ia fazer-se no Campo de Santana, ali acima, mas a ideia não foi por diante. E eu fui de cambulhada com socos e varandas para uns armazéns da Junta das águas.
- Era para dar cavaco,- disse-lhe eu para o lisonjear.
- E dei-o. Não é nada agradável estar em companhia de pedras sem categoria. Anos depois imbicaram comigo de novo. Um famoso arquitecto que os senhores tiveram, que era de sangue húngaro, estudara também um chafariz de respeito, ali para os altos do Chiado, em frente da Travessa do Secretário de Guerra.
- É hoje a rua Nova do Trindade…
- É isso mesmo. Mas aconteceu-lhe o mesmo que à fonte do Campo de Santana. O traçado era de polpa, semelhante ao da Esperança, com uma espalda toda catita, mas a ideia foi sacrificada.
-Era caro, naturalmente…
- Caro ou barato, (olhe que o barato geralmente não presta), desistiu-se de o construir mas como a água era ali precisa, e muito, arranjaram outro, feito à pressa, , com uma varanda que se pediu ao adro do Loreto,  e duas escadas para serviço de tanque. Os galegos (nova incarnação dos meus delfins) ficaram radiantes. Eram cerca de duzentos às ordens, de um capataz, arvorado em golfinho-mor da minha corte. E digo isto, porque me puseram lá.
- Deve ter visto muito, Senhor Neptuno…
- Coisas que não pode imaginar. Foi o melhor tempo da minha vida de estátua. A animação do largo, o Entrudo e a Semana Santa, os livreiros ao redor, os centros de cavaco onde pontificavam os artistas do lírico, ali perto o picadeiro do Feiner, que deixou o nome a um larguinho, a Estanqueira do Loreto, feia como uma matrona de Épiro, os botequins políticos, as festas do embaixador Lanes, os saraus líricos do Hotel da Península, a passagem das procissões, as festas pelos anos de Dom João VI; as corretagens amorosas do Rei Wamba, sempre de olho alerta à porta dos Grezieiros, e, sobretudo, os Delfins, de barris e cordas, a que chamavam galegos, e que deixaram memórias na ilha onde está agora um poeta que ainda não percebeu que está ali. Que saudades. Aquilo é que era um poiso agradável. E via correr a água. Sim, porque agora, só vejo águas paradas e águas paradas não têm graça nenhuma.
O deus ia tão entusiasmado na sua história, que não lhe quis cortar o fio. Pingos de lágrimas orvalhavam-lhe a barba. E continuou:
- Um dia embirraram comigo. Um munícipe qualquer, que não tinha nada que fazer, passou por ali e achou que eu afrontava a nobreza do local. Veja-se a ingratidão. E em 1852 vi-me apeado e depois de várias voltas, fui parar ao Museu do Carmo.
- Sempre era uma honra e uma distinção…
Seria, mas eu tomei-o como uma afronta ao Olimpo. No Carmo vivi uns anos. Estavam lá outras figuras de pedra, como eu, O São João Nepomuceno, o São Roque, a Dona Maria I, gente boa e de tom, mas estavam longe de ser da minha estirpe. Nunca tinha ouvido falar deles no Olimpo. Desculpe esta filausia.
-Por amor dos deuses…
- O que eu passei dava para um volume de memórias. Certa manhã levaram-me para o reservatório dos Barbadinhos. Gostei. Fiquei a presidir à chegada da água nova, vi a grande festa de inauguração do Alviela, e julguei, que ingénuo fui, que ali acabaria os meus dias de estátua. Não tardou muito que me tirassem do trono e passei a andar de armazém em armazém, mudado como um traste inútil. Fazerem, de mim um traste, lá me pareceu forte demais.
- E depois?
- Depois (parece-me que foi ainda ontem) acarretaram comigo para a Praça do Chile, uma rotunda que nunca mais acaba e onde eu fiquei positivamente a nadar. Aquilo foi para me amesquinharem. Talharem-me deste tamanho e porem-me numa praça tão grande! Senti-me ridículo, mas enfim tornei a cair na ingenuidade de supor que me deixavam ali quieto.
-Começo a ter pena de si, amigo Neptuno. Tartamudeei eu, para o amparar no desgosto.
-Obrigadinho. Quis porém o malfadado destino, que viesse para cá o Fernão de Magalhães e me pregasse a partida. Parece impossível. Um homem que eu protegi tanto, quando andou com a mania de dar a volta ao mundo. Tanto temporal que lhe evitei, tanto.
- E correram-no de novo.
- Sem a menor consideração. Agora vim parar aqui, para o Largo Dona Estefânia, (sabe Júpiter por quanto tempo) outra vez no meio de um lago, sem ouvir ao menos correr um fio de água. Tenho tantas saudades dos galegos.
- Esteja sossegado, poderoso deus. Agora devem deixá-lo em paz.
-Tenho medo…
- Medo de alguma nova avenida que corte o Largo Dona Estefânia?
- Não. Medo que se lembrem de pôr aqui o senhor Dom Pedro V!
O deus tornou a colocar nas mãos o tridente, flectiu o corpo na posição primitiva e, piscando os olhos de água…despediu-me com ar conformado de quem ainda não se sente seguro no seu trono de meia dúzia de dias.

Foto de Judah Benoliel, 1950, Arquivo Municipal de Lisboa.

Nota: Esta leitura mostrou-me um erro comum na net, a data da mudança desta estátua para o local onde ainda agora  se encontra ( sorte do  Neptuno ou boa cunha de Matos Sequeira)  foi em 1950 e não em 1951, como geralmente se lê.

3 comentários:

Bic Laranja disse...

Delicioso achado.
Já não se escreve assim porque ninguém aprende a cultura clássica. Não há quem na ensine.
Deve ser de andarem ocupados a despromover a escrita para o nível da barbárie.
Grato pelo artigo.
Cumpts.

teresa disse...

Interessante texto, seria caso para - extrapolando para a síntese feita por Camões no que diz respeito às mitologias clássica e cristã - concluir que este castigado Neptuno andou de Herodes para Pilatos:)

Carlos Caria disse...

Um exemplo grato de história e saber, com nota máxima.
Bem Haja!!!
Abraço amizade.