10 de outubro de 2010

Duas Amigas e o Namorado



Voltei a andar de Metro ao fim de muitos anos!
Chovia muito! Fartei-me do pára arranca do carro das 18:00h, em Lisboa. Estacionei (com muita sorte, na Columbano), e entrei na primeira estação que encontrei: Palhavã ou, como agora se designa, Praça de Espanha.
Estranhei a aquisição de bilhetes, as carruagens, a designação das linhas e os seus destinos: Santa Apolónia; Cais do Sodré; Telheiras; Amadora; e outras.
Penso que dei muito nas vistas como um não habitué e, assim, foi-me tolerado os olhares mais analíticos aos outros passageiros. É muito comum sentar-me e olhar as pessoas que estão ou passam, tentando criar, através das suas características particulares, perfis de vivências para elas.
Sentei-me no primeiro banco livre e fiquei rodeado por um trio de jovens na casa dos vinte anos, talvez universitários, um rapaz e duas raparigas. O rapaz e uma das raparigas de frente para mim e a outra rapariga ao meu lado, à qual mal conseguia ver-lhe os olhos.
Trocavam entre si conversa normal, mas o curioso é que ambas as raparigas expressavam interesse pelo rapaz. As suas expressões, o seu olhar, o tom de voz, indicavam claramente que, sem disputarem entre si, pretendiam que o rapaz se apercebesse dos seus interesses por ele. O rapaz, contudo, expressava na sua expressão, olhar e gestos algum incómodo pela dupla chamada de atenção sobre si.
Uma das raparigas, a sentada à minha frente, acariciava a mão do namorado, olhando-o nos olhos, sempre que a amiga tentava conversar com ele. Este baixava os olhos, talvez para não denunciar alguma escolha tida nesse momento.
Olhei para a rapariga sentada ao meu lado e apercebi-me que, da sua expressão facial, vocal e postural, brotava o desejo de receber o carinho do namorado da sua amiga.
- Queres que te levemos a casa? Perguntou a rapariga sentada à minha frente
- Não, obrigado. Tenho de o conseguir sozinha.
- Vê lá, não nos custa nada! Insistiu a amiga, acentuando a dicção no ‘nos’.
- Não vos quero atrapalhar. Respondeu a rapariga mudando por completo o tom de voz, de inquieta para resignada.
Percorri, discretamente, com o olhar a rapariga sentada ao meu lado e conclui. É bem mais bonita que a amiga! Mas, igualmente, pude constatar que as mãos desta seguravam, dobrada, uma bengala para cegos.

Fotografia de Estúdios de Horácio Novais, sem data, Galeria de Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.

12 comentários:

T disse...

São essas histórias que tingem a cidade de sentidos, que conseguimos apanhar nos transportes colectivos.
A mim aflige-me pensar na rapariga cega a percorrer o metro, que não é fácil mesmo para quem vê bem. Ainda por cima entristecida.
Belo e sensível texto, caro Miguel.

Jorge Freitas Soares disse...

Há guerras que são perdidas antes de começar

Eu fico sempre com um aperto no estômago quando penso nas dificuldades de ir pela vida sem um dos sentidos...

Belo texto
Jorge

Carlos Caria disse...

Estas são as pessoas e a cidade que não vemos, o calor que não sentimos, o amor que não cheiramos.
este é o amor cego de um coração talvez com vida e esperança num amanhã melhor.
Parabéns pelo belo texto Miguel.

Miguel Gil disse...

Sim T., são estas histórias que nos dizem que estamos vivos, que somos gente! Obrigado pelo comentário!

Miguel Gil disse...

Jorge Freitas Soares, penso que a rapariga só terá perdido uma batalha, não a guerra! Não sei se o transmiti no texto, mas a rapariga cega tinha muita energia e força de viver! Vai com certeza vencer, vai ‘batalhar’ pelo namorado certo!

Miguel Gil disse...

Carlos Caria, para um lisboeta que só escassamente vem a Lisboa é muito mais simples perder-se a captar estas situações. As grandes cidades tornam-nos anónimos, para o bem e para o mal! Actualmente vivo numa pequena cidade, onde todos se conhecem, e aqui não consigo captar tão bem estas histórias de quotidianos.
Obrigado pelo comentário!

Luísa disse...

Eu também tenho essa mania de ver os outros com olhos de ver (e até nos meios pequenos eu o faço!!! Sou mesmo abelhuda!!). Descobre-se sempre algo interessante, que nos ensina a ver as coisas de outra perspectiva.
Gostei do relato. Faz pensar!

Anónimo disse...

Belo texto.Comovente.

Fiquei aqui a cismar sobre aquilo que a vida nos trás e sobre o que temos de procurar.

parabéns


carlos pessoa domingos

Miguel Gil disse...

Obrigado Luísa!
'Abelhuda' acho que não!
Sensível penso que sim!
Ver os outros com olhos de ver é uma boa maneira de encarar a realidade.

Miguel Gil disse...

Obrigado Carlos Pessoa Domingos!
Sim, viver é uma construção e uma descoberta!

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto,Miguel.
Nos grandes e pequenos meios, os olhares plenos de vivências a que não conseguimos -nem queremos- passar indiferentes.

Céu Maia

Miguel Gil disse...

Obrigado Céu!
Sim, não quero nem consigo passar indiferentes as estas, aparentemente pequenas, histórias de vivências, que se cruzam com o nosso quotidiano.