29 de maio de 2010

Outras ondas...

Image and video hosting by TinyPic

Quando se faz referência a Virginia Woolf, é quase impossível não a associarmos a uma mulher melancólica, solitária e em constante conflito interior.
Torna-se, portanto, curioso o facto de ter a escritora participado numa das encenações mais «criativas» levadas a cabo no passado século.
Corria o mês de Fevereiro de 1910 e o HMS Dreadnought – imponente couraçado da Royal Navy – encontrava-se atracado em Weymouth. Acompanhada do irmão Stephen Guy e do poeta irlandês Horace de Vere Cole, decidem preparar uma interessante estratégia que lhes permita visitar a imponente embarcação. Para tal, fazem-se passar pela família real da Abissínia. Vestidos da forma que lhes parece mais convincente, são recebidos na localidade com pompa e circunstância, com direito à transmissão do hino nacional do Zanzibar, já que o hino da Abissínia era desconhecido.
No dia seguinte, a situação acaba por ser desmontada com a publicação de uma fotografia do trio no jornal Daily Mirror.
(agradecimentos: l’Intern@ute Magazine, tradução livre para este blog).

21 comentários:

divagarde disse...

Desconhecia mas não me surpreende, Teresa. Já em jovem, Virgínia participava activamente, em sua casa, juntamente com os irmãos - entre eles a pintora Vanessa Bell -, onde criaram um salão cultural a que acorriam jovens estudantes de Cambridge, inconformistas - o Bloomsbury Group. Discutiam arte, literatura, política e representavam quando calhava.
A arte, nas várias vertentes, sempre esteve presente na sua vida. A bipolaridade fazia-a oscilar entre períodos de isolamento, que inclusive a afastavam da escrita, e outros em que deixava clara a sua independência e pouca ortodoxia. A sua correspondência pessoal, por exemplo, é um exercício de escrita erótica quando discorre acerca do amor físico, e fundou, com o segundo marido, Leonard Woolf, a Hogarth Press. Tal como sugere o título do seu último romance, 1941, Virgínia vivia Between the Acts.
Várias e paradoxais ondas pois :)

José Quintela Soares disse...

Em "Orlando", escreveu Woolf:

"Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) - de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo - e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa."

Ondas e "eus".
Múltiplas.

teresa disse...

Grata pela interessante partilha de informação, divagarde. Depois da postagem fiquei a pensar se só eu tinha ficado surpreendida com esta representação ou farsa (sem sentido depreciativo) ou se a mesma seria do conhecimento de mitos e só para mim novidade.

teresa disse...

Interessante e propositada citação, José Quintela Soares. Quando se refere Konstantinus Kavafis ou Pessoa como os criadores de 'rostos' e de 'máscaras' com retorno sempre inevitável a «o poeta é um fingidor», tenho-me interrogado com frequência se não haverá outros rostos/máscaras com os quais nos esquecemos de fazer a ponte.

teresa maremar disse...

Na verdade somos vários eus… um com a família, outro com os colegas, outro no anonimato das ruas, outro… outro… e vários a sós [eu converso muito de mim para comigo :) e nem sempre eu e a [minha] outra estamos de boas relações :)].
Até a imagem que o espelho nos devolve é invertida :) logo, nem essa nos reenvia a exacta versão [nem a exterior] do nosso eu. Para lá daquele déjá vu de como nos vemos e os outros nos vêem, que é o mesmo da conta em que nos temos e nos têm.
[o Eduardo Lourenço teve uma resposta engraçada quando lhe perguntaram como gostaria de ser recordado, mas que agora não recordo eu]
Não que sejamos actores, apenas assim é porque é, em uns mais desenvolvida a ambivalência, em outros mais atenuada [e é isso que torna o ser humano fascinante - ser muito previsível tem pouca graça :)]
Há uns tempos conversava sobre o “Ontem vi-te” e o impacto que tal causava. Porque a um “Vi-te” - sem termos visto -, logo nos perguntamos… “Onde? Como?...” por curiosidade ou inquietação. Ou seja, logo espreita um… “que fazia eu quando me viu?” [querem ver que estava no carro, debruçada ao espelho, futilmente, a colocar batom? :)]
Mas regressando ao sério, é no todo [ou nesses todos] que somos. Esse todo nem sempre coerente e, por vezes, paradoxal.
E não resisto a deixar estes versos, tão conhecidos mas sempre encantadores, de Sá-Carneiro

“Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro”

José Quintela Soares disse...

Há sempre, teresa.
Conhecemos quase sempre um “eu”, mas não há apenas um em cada pessoa.
Haverá o mais conhecido, o mais transparente, restando os outros na penumbra que cada qual cria para as “máscaras” que não pretende divulgar.
Tolstoi dizia que cada pessoa assemelha-se a um rio. Uns dias revolto, outros tranquilo. Estreito aqui, largo acolá. Sujo e limpo.
Fingidores…somos todos, afinal.

divagarde disse...

teresa,

ficou aqui a bailar-me um nome que não vinha, algo que tinha lido quanto a uma escritora italiana, ainda em descoberta porque o seu espólio promete mais, tida como Pessoa no feminino. Acabei de lembrar... Cristina Campo - Vittoria Guerrini, o seu nome verdadeiro - e o artigo que eu lera encontrei aqui

http://phala.wordpress.com/2009/07/13/tempo-turvo-regresso-a-cristina-campo/

penso gostará de passar por lá.

teresa disse...

Uma vez mais fico entusiasmada com os vossos comentários. Há simples episódios que podem dar temas inesgotáveis.
Pegando nos dois últimos comentários lembrei-me, subitamente, de situações do quotidiano e, ao mesmo tempo, de temas e épocas que sempre exerceram (pessoalmente) especial atractivo:
- relativamente ao dia-a-dia e, falando em contexto sala de aula, dou comigo a explicar frequentemente que o nosso discurso se deve adaptar ao contexto enquanto regra de bem-viver. Poderá isto parecer algo de demasiado óbvio, mas não o é quando lidamos com faixas etárias que não conseguem destrinçar o que é falar com os amigos na esplanada da provável situação de ter dialogar, por exemplo, com uma entidade oficial a fim de apresentar uma exposição (ou em qualquer outro contexto formal). No entanto, parece-me que a adaptação discurso-contexto não consistirá em envergar diversas máscaras, embora fique sempre a interrogação;
- quanto à novidade de atitudes por parte de quem criou em nós uma dada imagem e estabelecendo daí a ponte para vida-obra (neste caso a literatura), pergunto-me se as «máscaras», «heterónimos» ou o que lhes queiramos chamar serão assim tão grandes inovações (e aí entra o tal fascínio pela poesia galego-portuguesa) quando as primeiras manifestações literárias que conhecemos na nossa área geográfica foram escritas por jograis e trovadores (os Martins, os Pêros, os Joanes...)que se colocaram no papel de jovens raparigas, conseguindo na perfeição transmitir a sua sensibilidade.
E o comentário já vai algo longo, mas termino com a noção de enquanto estudante de literatura ser sempre alertada para não fazer leituras biográficas, o que confrontei com um trabalho académico de Psicologia que, em tempos, me pediram para corrigir em aspectos meramente linguísticos: tratava-se da ligação de tendências suicidas da escritora F.Espanca com a sua obra. Dei comigo a sorrir, pois um tema que numa área (Psicologia) é considerado importante, noutra (Literatura) é censurável... e lá se foge uma vez mais aos posts:)

divagarde disse...

José Quintela Soares,

fiquei também a meditar no seu comentário. Não sei se somos fingidores, embora escolhamos máscaras [ou não e elas surjam naturalmente, em virtude das circunstâncias].
Mas porque as mesmas não deixam de ser determinadas por nós, também os fingimentos são ditados pelo eu que somos. É esse, que faz escolhas de ser e parecer que é o nosso todo, o nosso estar, a nossa essência.

José Quintela Soares disse...

Não resisto a transcrever uma pergunta feita à Profª Maria Helena da Rocha Pereira e a sua resposta, em entrevista publicada na última "LER", que cito com a devida vénia:

"Como é que explica, por exemplo, um Ricardo Reis?"

"Se Fernando Pessoa tivesse sido educado em Portugal, em vez de ser na África do Sul, Ricardo Reis não teria existido. Era preciso saber as "Odes" de Horácio de cor para fazer as "Odes" de Ricardo Reis, e Pessoa não o saberia aqui".

Nunca tinha pensado nisto.

divagarde disse...

Pois é, teresa :)
e agora as Cantigas de Amigo lá nos levavam para questões de género e sexo, e nos desviariamos mais e mais.

José Quintela Soares disse...

"divagarde"

Concordo consigo, mas se o "eu" escolhe a "máscara"...finge.
Se não houvesse "máscara", não fingiria.

divagarde disse...

José Quintela Soares,

se Pessoa não tivesse ficado sem pai e a mãe não houvesse voltado a casar, e esse casamento o levasse para a África do Sul. Se Pessoa não tivesse deixado de ser o menino de sua mãe, e se não se tivesse visto só e longe da família e do seu país.
Teriam existido Ricardo Reis ou os demais?

Eu sei que há quem defenda que os heterónimos de Pessoa~são os filhos que não teve, teoria que não me convence. Para mim, foi a infância solitária que o levou a criar amigos imaginários, como acontece a todas, ou à maior parte das crianças.
Se para a maioria dos adultos essa questão fica resolvida na infância, penso que, no caso de Pessoa, a perda em deixar de ser o único, o favorito, o menino do pai e da mãe, associada ao novo espaço e nova família, terão contribuido em muito para a não resolução dessa desfragmentação. Para a qual, acredito, contribuiu também a sua personalidade.
Concorda?

divagarde disse...

As respostas chegam cruzadas :) só li a sua resposta agora.
Tenho para mim que há fingimentos intencionais, quem mostre o que não é, mas também que as relações sociais e adaptação a várias circunstâncias levam-nos a ter certos estares que não sendo divergentes terão de ser, em um ou outro contexto, de mais comedimento.
Não posso ter a mesma gargalhada leve e solta num ambiente mais contido e sóbrio, contudo não me contenho porque finjo, apenas sou mais bem comportada porque as regras obrigam :)))
Também concorda? :)

José Quintela Soares disse...

Na minha opinião (que vale ela?) os heterónimos que Pessoa criou são muito mais uma resposta à sua necessidade, como poeta, de personalizar o que queria transmitir para além de si mesmo, do que propriamente reflexo de uma infância marcada pela morte do pai. Não sei, de facto, o que teria acontecido em situação diferente.
Mas creio que o génio seria o mesmo, e a perspectiva de ser pequeno para tudo o que lhe ia na alma, manter-se-ia.
É a minha opinião, “divagarde”.

José Quintela Soares disse...

"Comedimento"...é fingimento, ainda que leve.

:)

teresa disse...

... e como estou prestes a fugir em ambos os sentidos (literal e figurado), ficam breves considerações finais: penso que a professora M.Helena R.Pereira estará certa, embora a afirmação corra o risco de parecer (com as devidas vénias e humildade pessoais... " mas quem sou eu?") algo taxativa. Ninguém menciona a tal propósito, mero exemplo, a poesia de Sophia de Mello Breyner que tanto deixa transparecer do que é «tratar os clássicos por tu»... mas certo, ela também terá sido uma cidadã do mundo.

Quanto às Cantigas de Amigo, fiquemo-nos por aqui, a divagarde tem razão, "palavras são como cerejas" e acaba-se a fazer pontes com as aulas do professor Vitorino Nemésio (de acordo com o que me contaram pessoas "mais crescidas" que o tiveram como professor, interessantes, mas fugiam do tema porque era, antes de mais, um entusiasmado conversador):)

divagarde disse...

Pois, e voltámos aos eus :)
Que outros teriamos sido, Pessoa e todos nós, fossem outras as nossas opções nas encruzilhadas com que nos deparámos?

Mas creio que o génio seria o mesmo, e a perspectiva de ser pequeno para tudo o que lhe ia na alma, manter-se-ia.
Gostei particularmente deste parágrafo :)

divagarde disse...

Uiii teresa, não traga o Nemésio ou então temos outras pontes :)
Vou no seu fugir, literal e figurado :)

almariada disse...

uma vez falaram-me de um conceito a que chamavam "egrégora": um grupo de pessoas é uma identidade única.
se uma pessoa chega ou se vai embora a "egrégora" é outra.
assim, consoante a "egrégora" em que se encontra, a mesma pessoa é, relativamente, outra: numa é jovem, noutra é velha, numa é insignificante, noutra o centro, etc., etc., sem fingimento...

teresa disse...

Os interesses de cada um são, sem dúvida, bastante próprios e, de entre muito que por aqui se trocou (as divagações também são importantes, (opinião pessoal) não poderia deixar de destacar as referências a Vittoria Guerrini, ao conceito de "egrégora", passando pelo relembrar de Maria Helena R. Pereira (que só conheci através de leituras enquanto autora de estudos sobre Antiguidade Clássica):)