14 de maio de 2009
O imaginário infantil
Fui morar muito cedo para o que ainda era campo, hoje a maior freguesia da Europa, estragada por um caos urbanístico. O meu pai queria que pudéssemos correr em liberdade – na altura éramos dois, o meu irmão J. e eu - ele sonhava com uma horta, tendo como livro de cabeceira “A horta do Tomé” e contagiou-me neste gosto pela terra e por ver crescer as plantas.
Antes de sairmos de Lisboa, a avó e a sua irmã de Porto de Mós desde muito jovens a viver na cidade, comentaram que a opção seria desinteressante. Acabaram por concluir que estavam erradas, pois tanto o meu irmão como eu trocámos de bom grado a praça João do Rio pelos campos e começámos, desde cedo, a poder andar em liberdade, sem rigidez de horários (a não ser o das refeições, escrupulosamente respeitado lá em casa). Ainda hoje nos rimos , agora já em “trio de irmãos” , quando afirmamos ser “suburbanos”, espécie de divisa contra certos elitismos com que nos temos deparado ao longo da vida.
As saloias vinham à porta vender pêra rocha e batatas e chegavam de burro. O leiteiro parecia uma espécie de pai Natal como eu o idealizava na infância, só que em vez de chegar de rena vinha numa motorizada com atrelado onde transportava enormes recipientes de latão a entornar durante o trajecto.
Na rua eu era a única rapariga, dado a Bioca não contar (a minha avó, com problemas auditivos, sempre referiu ser estranho o diminutivo de “Minhoca” escolhido para a miúda), pois os seus pais – com ar de avós - pouco a autorizavam a transpor o portão . Gostávamos de saltar os muros e de subir às árvores, andando sempre cheios de mazelas. Os jogos preferidos eram brincar aos índios e cowboys e às batalhas que começavam com o M. a tocar uma corneta pomposamente designada por “corneta de D. Afonso Henriques”. Quando ouvi pela primeira vez o toque roufenho, não levei mais a sério estas guerras que incluíam, entre outras investidas e na falta de lanças e de espadas, atirarmos pedras uns aos outros sem nunca termos sido apanhados em flagrante, pois havia um matagal ao fundo da rua, nosso território exclusivo.
Após relutância inicial, os guerreiros lá me aceitaram no grupo , chegando a adoptar alguns dos planos por mim sugeridos, numa versão simplificada de Aljubarrota.
Num triste dia, parti a cabeça ao J. durante uma das contendas. A avó ficou desesperada quando o viu chegar a casa com aparência de quem necessitava de internamento urgente (precisará de levar gatos? Dizia ela, deixando-nos perplexos, pois não entendíamos o que teriam os felinos a ver com o caso). Após cuidadosa observação, lá concluiu que os ferimentos de combate não obrigariam a uma ida ao médico. Eu não entendia a gravidade do ocorrido. Aos sete anos (o J. tinha seis), a minha representação de “partir algo”, assemelhava-se a quebrar uma peça de loiça e nem sequer tinha visto “cacos no chão” ao atingir um elemento das “hostes adversárias”.
Estas memórias chegaram quando ontem revisitei uma amiga de infância já cansada de estar no hospital, pois a fisioterapia prolongada assim o exige… é que quando há muitos anos fomos colegas de escola, contou-me que a sua representação infantil de conduzir “fora de mão” seria o condutor ir de vidro aberto e com a mão de fora da janela do veículo.
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9 comentários:
Já postei aqui a horta do Tomé:)
Ainda estou a ver o livro (na altura já antigo) que o meu pai tinha sobre a mesa de cabeceira, e quanto a já teres postado só me ocorre acrescentar que «isto anda tudo ligado»:)
(na época também espreitei o livro)
É bom ter memórias tão bonitas e estimadas.
Pela vida fora, revisitamos tudo o que é bom.
:-)
Concordo, rosarinho.
As pessoas que não lembram estes bons momentos de infância devem perder muito:)
É bom lembrar.
É bom não esquecer.
É difícil contar.
Foi um prazer lê-la.
Bonne journée :)
Notinha:acabei de ler Nove Mil Passos que sugeriu, aqui, em tempos. :))
Emma
Os Nove Mil Passos fui eu que sugeri:)
Gostou de ler?
Pois foi, Emma, a T. sugeriu e eu também irei ler em breve o P.Almeida Vieira pois fiquei curiosa:)
... et bonne journée!:)
Oh! As minhas desculpas a ambas…
Gostei, e muito.
Humor fino, elegância, delicadeza. A atenção dada aos pormenores. O final …
Ainda me rio, sempre que me lembro das “saídas” a Odivelas ou ainda daquela maneira muito peculiar de organizar a agenda semanal…
Muito actual também: intrigas, hipocrisias e afins…:(
Uma delícia.
Obrigada.
Emma
……………………………………….
Olá Teresa,
Leia, leia…
Vai adorar. ;)
Emma
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