1 de abril de 2009
Romanceiro ou quando a literatura era "conversada" ao serão
Quando a literatura de tradição oral não é transposta para o registo da escrita, corre-se o risco da perda de memória do património cultural.
Tendo contactado com este género narrativo em verso há mais de 20 anos, senti a lacuna de o não ter feito com o tempo e o aprofundamento desejáveis.
Do que me foi dado a conhecer – opinião pessoal talvez não destituída de fundamento – transpus de imediato para o imaginário narrativas transportadas no tempo e no espaço por viandantes, numa época em que não existia o apelo tecnológico dos nossos dias apressados. Não sendo conscientemente defensora de uma visão dual do mundo: bom/mau; belo/feio; antigo/moderno, imagino como seria gratificante o espaço convivial que levava as populações, abrigadas junto ao lume que para os vilarejos mais rústicos de nordeste ainda se vai mantendo vivo na cozinha, numa partilha de saberes, de versos, de adivinhas... A valorização torna-se particularmente importante, numa época em que – citando Maria Judite de Carvalho – se vive uma “solidão acompanhada”: rodeamo-nos de multidões, mas corremos desenfreadamente, não olhando rostos nem aprofundando vivências. Lembro um amigo dos meus pais que um dia, tendo-nos convidado para jantar em sua casa – vivia num prédio de 10 andares numa artéria movimentada da cidade – me disse: “vivo aqui há 6 anos e, se um dia precisar de algum auxílio, não conheço o nome nem o rosto dos meus vizinhos”. Evoco ainda outra grande amizade da família, pequeno lavrador a viver numa região agrícola da grande Lisboa que, num dia de inícios de 60, afirmou: “desde que a televisão entrou cá em casa, acabaram os serões de conversa, com as senhoras da casa a fazerem camisolas junto à lareira”.
Para concluir, o fascínio que me trouxe o romanceiro – que bom ter sido fixado pela escrita por alguns autores, com especial destaque para Garrett – foi ter descoberto que a base narrativa é comum a tantos enredos conhecidos. Para não repetir os tão conhecidos “Bela Infanta” ou “Nau Catrineta”, parte integrante do percurso escolar de tantos, passo a transcrever parte do romance “Donzela que Vai à Guerra” por me parecer ver nele um mergulho nos arquétipos do inconsciente colectivo: a associação, estabelecida desde a Antiguidade Clássica ou a culturas de diversos povos, levou ainda ao elo com a mítica Joana d’Arc ou, saltando no tempo, ao aproveitamento da figura de Mulan tão conhecida dos mais novos através das produções Disney:
Donzela que vai à guerra
- "Já se apregoam as guerras
Entre França e Aragão:
Ai de mim que já sou velho,
Não nas posso brigar, não!
De sete filhas que tenho
Sem nenhuma ser varão! ...
" Responde a filha mais velha
Com toda a resolução:
- "Venham armas e cavalo
Que eu serei filho varão."
- "Tendes los olhos mui vivos,
Filha, conhecer-vos-ão."
- "Quando passar pela armada
Porei os olhos no chão."
- "Tendes los ombros mui altos
Filha, conhecer-vos-ão."
- "Venham armas bem pesadas,
Os ombros abaterão."
- "Tendes los peitos mui altos
Filha, conhecer-vos-ão."
- "Venha gibão apertado,
Os peitos encolherão."
- "Tendes las mãos pequeninas
Filha, conhecer-vos-ão."
- "Venham já guantes de ferro,
E compridas ficarão."
- "Tendes los pés delicados,
Filha, conhecer-vos-ão."
- "Calçarei botas e esporas,
Nunca delas sairão.
[...]
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4 comentários:
Gostei muito de relembrar este excerto do Romanceiro.
Em minha casa a televisão entrou relativamente cedo, mas raramente era ligada e do pouco tempo que estava ligada nem sempre nos era permitido assistir.
Éramos muito irmãos, com idades muito próximas. Ainda a televisão era a preto e branco, quando havia, na nossa casa do momento (éramos nómadas) uma "espécie de telenovela" espontânea, improvisada, ao vivo e a cores, complicada de gerir para os tentavam assumir o melhor que sabiam o papel de realizadores (o folhetim tinha sempre próximos capítulos...).
Quando os agregados familiares são numerosos, a televisão é um acessório que não se faz notar:)
Lá em casa, todos se deitavam cedíssimo e eu - que não tinha de madrugar todos os dias - era aconselhada a fazer companhia à minha avó para ver os filmes de longa metragem das quartas-feiras à noite da rubrica "Noite de Cinema" e, já na época, eram películas tão antigas "como a sé de Braga". Entravam senhoras com penteados de dama antiga e cavalheiros de calção e "collant" e começavam a cantar aquelas músicas muito hollywoodescas - à época - no meio de canteiros cheios de flores, sem que eu percebesse muito bem a que propósito tanta cantoria desenfreada:) A minha avó ficava deliciada com aqueles enredos. Nem sei mesmo o porquê de me pedirem que ficasse perto dela, pois nem notava a minha presença.Mais tarde, já no tempo dos "seriais" (o Santo, Maxwel Smart, Danger Man), o divertido era ouvir os comentários da avó Antónia, do tipo: "o dinheiro que eles gastam a espatifar automóveis nestes filmes, mais valia ajudarem quem precisa" ou então "foge, rapaz, que os bandidos estão escondidos para te matar" e etc.
conheço este romance em várias versões, algumas gravadas em campo.
a amélia muge tem uma versão num disco chamado 'novas vos trago' (uma colecção de romances editados pelo zé moças e a sua tradisom).
aqui podem ouvir a coisa:
http://www.attambur.com/OutrosSons/Portugal/ameliamuge.htm
Amiga,
Gostei da narração dos teus serões...
Olha que no que respeita ao esbanjamento de capitais, lembro-me de ter pensado, em nova e ainda actualmente, quase "ipsis verbis" como a tua avó Antónia:
"o dinheiro que eles gastam a espatifar automóveis nestes filmes, mais valia ajudarem quem precisa"
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