18 de abril de 2009
Raízes: os contadores de histórias
Há dias deixei por aqui um texto sobre a literatura de tradição oral. O facto de as narrativas serem transmitidas através da voz, do gesto e da expressão facial, não encontra termo de comparação com a atitude do leitor que percorre um livro, interrompendo a actividade por motivos diversos (sobretudo se se trata de textos técnicos ou científicos, mas há que não divagar…). “Contar” a literatura torna-se inseparável de uma força de socialização. Transmitir, através da expressividade da voz , contos tradicionais, lendas e adivinhas leva a que – contador e ouvintes – se olhem em permanência, interrompendo ou questionando quando tal se afigura necessário.
Recuando aos textos do romanceiro, entende-se facilmente o porquê da rima e do ritmo, aspectos facilitadores da memorização, sobretudo numa época em que a frequência escolar era quase inexistente.
Todos estes aspectos – em opinião pessoal, interessantes – nos conduziram ao conhecimento da existência, até aos nossos dias, de “contadores de histórias”, recurso aproveitado para lembrar aos alunos as nossas tradições.
Foi gratificante verificar que os jovens, em época de tantas solicitações tecnológicas, ficaram fascinados ao ouvirem antigos relatos de lendas e de contos tradicionais, sendo estes últimos sempre concluídos com a fórmula: “bendito e louvado, está o conto acabado”.
Tudo isto trouxe à memória as tradições africanas, ainda hoje tão vivas, bem como um excerto deste texto de Cabo Verde:
Grande contadeira de histórias era nha Rosa Calita, velha pretona a quem os rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho(…). E que lábia ela tinha! Era um gosto ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que se casavam com a filha do rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado aquele-homem-pelo-sinal-da-santa-cruz, e as demonarias das feiticeiras que iam ao Espongeiro tomar ordens no seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas em bichos, a agoirentar a vida da criatura.
Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir nha Rosa Calita, o sono fugia-nos totalmente; mas as histórias de feiticeiras, tão cheias de cantigas aziagas e fachas de lume voando, aqui e ali, na noite, punham-nos um medo tal no corpo que nos chegávamos mais para o centro da salinha, a evitar a sombra de uma bombardeira, que parecia lobisomen de chapéu na mão, cumprimentando. Mas muitas vezes Rosa buscava casos que contivessem lições de vida moral para nosso ensinamento. Os exemplos que ela botava vinham vestidos daquela lábia pitoresca com que as palavras, saídas da sua boca mocha de dentes, se animavam de vida real. (…)
- Nha Rosa, se você contar mais histórias, dou-lhe uma mãozada de erva para encher de melaço o seu cachimbo…
- Eu dou-lhe um litro de farinha para você fazer pirão…
Baltazar Lopes, Chiquinho (transcrito com supressões)
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6 comentários:
Bonita lembrança, Teresa.
"Chiquinho" de Baltasar Lopes. estava em alinhamento para as capas, porque é muito bonita a capa que o pintor António Domingues desenhou. Como o Carlos poderia dizer que foi por causa de livros como este que não leu os "Cinco" da Enyd Blyton, mas estaria a mentir - porque os leu. Pensa que não lhe fizeram mal algum - nem mal, nem bem - assim como as fitas do Joselito, da Sara Montiel, do Pedro Infante que a avó paterna o levava a ver ao "Odeon" e que não o impediram de chegar a John Ford, a Coppola a uma séria de realizadores que, hoje, constituem o seu panteão.
Pela lembrança, vai apenas pôr uma roupinha em sabão e regressará com a capa.
Que bom parar um bocadinho com as obrigações da escrita (será científica???) que me empurra para levar a cabo esta "demanda" e verificar que a linda capa foi postada lá em cima! Um grande agradecimento, pois contribuiu um pouco para este "coffe break":)
Teresa:
Adorei! Adorei!
Bom labor!
Ufff! A 2 dias do finzinho já começo a ver uma luz ao fundo do túnel... e acabei de mudar de computador, finalmente percebi que a máxima aplicada à antiguidade do vinho e dos amigos não é extensiva às novas tecnologias...
bjs:)
Vai correr bem.:-)
Já vou na bibliografia... Yesss!
Guardei-te a revista do Público da semana passada, podes ficar com ela:)
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