Gostava de escrever um texto bonito sobre este homem por quem tinha uma ternura especial, como velho jornalista, boémio e escritor mas reconhece a incapacidade. “Há homens que não são fáceis de adjectivar”, tal como ele escreveu na morte do seu amigo e camarada de profissão Roussado Pinto.
Escreveu meia dúzia de livros: três policiais, com o pseudónimo de Dennis McShade , três ou quatro livros onde reuniu crónicas publicadas em jornais e revistas. Mas ficará para a história por um só livro: “O Que diz Molero”
Um livro bem gozado, do arco-da-velha, saudável, feito à base do seu “sótão de infância”. Lembra os dias no bairro da infância, com a malta a fumar às escondidas, a meter golos de trapeira nos vidros das janelas da vizinhança, os concursos de ver quem mija mais longe, as alcunhas deste e daquele, os concertos de campainhas de porta. Uma aventura formidável, autentico passe de mágica ou, como escreveu o Luiz Pacheco: “uma feira, um tropel de gente, uma festa popular de malucos e malucas, tudo chalado, uma alegria enorme quase insensata
Publicado em 1977, a edição de “O Que Diz Molero”, que tem é a 4ª e na badana Eugénio d’Andrade deixou escrito: “é uma alegria este livro”. E é, realmente. Se nunca o leram façam-no agora e com carácter de urgência.
“Último cliché do bairro, enquadrado na cidade, e esta no rio, envolvendo o segundo amor da sua vida, que o primeiro, esse terá sido, segundo apurou Molero, a Greta Garbo, temos um poema dedicado à menina Mariana, formosa e intangível, a mais fugaz e pudica das aparições lá numa janela alta, o seu Amor de Perdição, caiu nas mãos dele, certa noite, o romance de Camilo, leu-o de um fôlego, enfeitiçado pela maneira como uma simples história de amor pode assumir a grandeza, estava repleto de febre e de Simão quando rompeu a Aurora”, disse Austin, e fez uma pausa. “O poema diz: Há pombos esquecidos nas estátuas desta cidade naufragada. Mastros de sombra escrevem o teu nome e em cada letra reconheço a madrugada. Mulheres e homens, enlaçados de cansaço, dormem um sono fundo, com raízes. Das margens desse sono se levantam as pedras das palavras que não dizes. Foge o mar dos meus dedos entre a noite, e a noite é uma canção que te procura. Nos meus olhos ardem estrelas encharcadas que rodeiam de azul a tua altura. Cada esquina é um cais à tua espera. Faróis e candeeiros chamam por ti. Como um sonho deslizo e permaneço na rua da janela onde te vi. Finalmente os pombos largados, partindo desta estátua que tu és”.
É um excerto de “O Que Diz Molero”. O ano passado, quando se comemoraram os 30 anos da publicação do livro, foi editado pela Livraria Bertrand, uma edição especial. Pelo meio pode ler-se: “Leduc foi um homem feliz e um homem feliz é um drama.”
Na morte de Dinis Machado lamenta não saber fazer melhor. Outros fá-lo-ão, necessariamente.
2 comentários:
dinis machado foi um caso único na literatura portuguesa.
injustamente quase sempre ligado a um livro magistral, provavelmente dos melhores que a literatura portuguesa já produziu.
a sua dimensão é tão grande que quase se torna impossível escrever algo 'imitativo', de tão forte saiu aquele 'molero'
com as devidas distâncias, é uma espécie de 'ulisses', que também ninguém se aventura a escrever algo 'ao estilo'.
mas é injusto, porque o dinis machado foi um cronista de primeira água.
acutilante, sempre a fazer-nos puxar pela memória ou pelas intrincadas relações do textos com o cinema, os livros, as ruas.
tive a sorte de ainda o ter conhecido nos meus tempos de adolescente no bairro alto, quando este era o centro dos jornais de lisboa. (a ele e a muitos outros, felizmente).
depois saiu mais daquelas áreas para a editora da bertrand on dirigiu o tintin que tinha a particularidade de juntar numa mesma revista as duas grandes rivais do eixo franco-belga, que ao tempo dominava a banda desenhada europeia: a tintin e a pilote.
e como se isso não bastasse, ainda fez publicar numa colecção que (acho) era por si dirigida (a rififi), dois dos melhores livros policiais que já li: requiem para d. quixote e a mão direita do diabo.
era um homem duma cultura fabulosamente rica.
uma das suas últimas entrevistas, a adelino gomes, no público, é obrigatório ler:http://static.publico.clix.pt/docs/Cultura/DinisMachado.pdf
Uma homenagem imprescindível. Obrigada aos dois.
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