11 de dezembro de 2006

Da problemática do aborto (IV) - Das liberdades individuais e colectivas

Admite-se que existe vida desde a fecundação/concepção – mais do que admissão, é uma evidência científica. Admite-se –acho que é consensual - que a vida é um dos poucos bens absolutos e que a sua protecção deve prevalecer (sempre ou quase sempre) sobre outros bens ou direitos.
No entanto, e de uma forma pragmática, admite-se que em situações limite se possam sobrepor outros direitos sobre o direito à vida… e essas situações limite podem ser as fases muito precoces da vida, ou as fases terminais, ou até formas de vida “nocivas”. Nestas situações é admissível aceitar que se possa terminar vida, com uma justificação, sem que daí decorra crime ou penalização. É aqui, quanto a mim, que se insere a discussão sobre a despenalização do aborto, e com todo o sentido. É também aqui que se inserem as discussões sobre a eutanásia e sobre a pena de morte, também com todo o sentido.

E assim, entramos no mote do texto: da liberdade ou direito de decidir sobre a realização de aborto? Ou, relembrando a frase do acórdão de 1973, “para escolher o momento até ao qual fazer um aborto não incorre em pena, há que arbitrariamente determinar um meio termo entre o direito da mulher a decidir e o direito da criança à vida.”

Uma das coisas que mais me surpreende nesta questão, é a crença que o direito da mulher – ou do casal – a decidir ou escolher é um direito absoluto, que nunca pode ser limitado. É a crença inabalável que, em questões de consciência individual que não interferem com outras pessoas, a sociedade não possa impor normas de comportamento. Mas pode, e impõe, e nós aceitamos essas normas.
Ou seja, existem situações, que só dizem respeito a nós como indivíduos, em que não temos a possibilidade de decidir e escolher. Por exemplo, não podemos dispor da nossa liberdade: ninguém, em consciência e na posse de todas as suas capacidades, se pode tornar escravo de outra pessoa. Também não podemos dispor do nosso direito de voto: podemos não o usar, nunca o usar, mas não o podemos doar ou transmitir a ninguém. Também não podemos, mesmo que o queiramos, viver em bigamia ou concubinato. E em última análise, até não temos liberdade para dispor da nossa própria vida.
Assim, é perfeitamente normal que a sociedade restrinja determinadas liberdades individuais, mesmo que interfiram única e exclusivamente só com próprio indivíduo. Situa-se aqui o caso do aborto: é lícito que a sociedade (estado) restrinja a liberdade individual de escolha da mulher – ou casal. Não só para proteger a vida mas, essencialmente, porque é outra vida.
Por outro lado, o direito da mulher – ou do casal – a decidir quando quer ter um filho nunca fica restringido. Todas [claro que não são mesmo todas…] as pessoas são responsáveis, têm acesso à informação e têm acesso a múltiplos métodos contraceptivos que lhes permitem determinar – quase sempre – quando querem ter um filho. Presumir que nunca existam – ou que se possam sempre terminar -gravidezes não desejadas, é presumir que podemos determinar todos os acontecimentos da nossa vida. E não podemos… mesmo havendo forma, como é este o caso… A vida é o imponderável!

Sendo a liberdade individual restringida, resta a liberdade colectiva. Uma sociedade tem a liberdade de decidir, de permitir ou não permitir determinadas acções aos seus membros, independentemente da justeza dessas acções. Neste caso, qualquer sociedade tem a liberdade de dar a primazia à defesa da vida, de uma forma abstracta – poder-se-á até dizer à defesa do seu património genético – ou dar primazia à defesa do bem-estar e satisfação dos seus membros. No fundo, também a defender a vida, numa forma concreta.
E é disto, quanto a mim, que se trata nos referendo. No fundo, é esta a verdadeira escolha que iremos fazer. Diria, quase, que qualquer uma das escolhas é boa…

Finito, por hoje. Acredito que a liberdade individual de escolha – da mulher ou casal – não se sobrepõe ao direito à vida. Que esta nunca pode ser apenas uma questão de consciência individual e que a sociedade pode restringir esta liberdade individual. Acredito que esta é uma questão de liberdade colectiva e que um referendo tem todo o sentido. As perguntas a que falta responder serão: Será que a actual lei responde às necessidades da sociedade? O que é que a nova lei traz de novo?

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