10 de dezembro de 2006

Da problemática do aborto (III) - Do início da vida

Quando é que começa, verdadeiramente, a vida? Uma resposta clara a esta pergunta poderia simplificar as nossas opções na questão do aborto. Mas essa resposta clara parece não existir, pelo menos no sentido de poder existir um ponto inequívoco, após a concepção, que demarque o antes – ausência e vida humana – do depois – existência de vida humana. Mas podemos tentar responder a esta questão em dois planos distintos: o plano científico e o plano filosófico/jurídico.

Em termos científicos, e como já falámos, a ideia que existe vida desde a concepção –presente na altura da proibição, no século XIX – evoluiu para o postulado que a vida só surgiria mais tarde, durante evolução do embrião – que serviu de sustento à legalização do aborto, nas fases precoces da gravidez, nos anos sessenta e setenta do século XX.
Mas a grande dificuldade surge na identificação desse ponto. Desde sempre, os principais candidatos a possível critério médico do início da vida, além da fecundação, são os seguintes: nidação, início da síntese de proteínas, início dos batimentos cardíacos, formação do Sistema Nervoso Central (SNC), aquisição de sensibilidade periférica (SNP), viabilidade extra-uterina e nascimento. Vejamos…
Em termos puramente científicos, o nascimento é apenas um epifenómeno, pelo qual a criança deixa de viver in-útero e passa a viver fora do útero, e que nunca pode ser um marco de início da vida. A viabilidade extra-uterina, ou seja a altura em que o feto passa a poder existir autonomamente da mãe, é um marco muito atractivo. No entanto, a evolução técnica tem vindo a permitir viabilidades cada vez mais precoces, não sendo possível definir com exactidão este ponto. Acresce que, nesta altura, não existe qualquer mudança substancial no feto, mas apenas uma maior maturidade de alguns sistemas biológicos. A formação do SNC e SNP, que ocorre entre as 9 e 12 semanas, pode ser um critério admissível e é dado por muitos como válido. No entanto, e mais uma vez, não existe qualquer mudança fundamental entre o antes e o depois mas apenas uma evolução do mesmo. Além do mais, é antecedido pelo início dos batimentos cardíacos (6 a 8 semanas). Ou seja, cientificamente nenhum destes critérios é válido.
Assim, a teoria científica actual - universalmente aceite - indica que o início da vida tem que ser um acontecimento único e crítico, de "descontinuidade", e do qual surja uma nova individualidade biológica. E este acontecimento único é a fecundação, o momento em que ocorre a fusão dos gâmetas masculino e feminino (singamia) originado uma nova identidade com um património genético próprio e único (genoma). Além disso, este embrião unicelular já tem autonomia, já é capaz influenciar o seu destino ao enviar mensagens químicas que alteram o funcionamento do ovário e suspendem o ciclo menstrual da mãe. Ou seja, biologicamente, o embrião é desde o início um novo ser vivo e todos os passos seguintes são meros estadios de desenvolvimento e maturação.

E em termos filosóficos? Em termos filosóficos o conceito de vida pode não coincidir com a vida biológica o que, em termos jurídicos, poderá favorecer a aceitação do aborto durante algum período da gravidez.
Sob este prisma, um feto pode ser biologicamente humano (humano em sentido genético), mas isso não faz dele um ser vivo, ou melhor, um ser com direito à vida. Somente uma pessoa (humano em sentido moral) têm esse direito à vida e as características que definem um ser vivo como pessoa "em sentido moral" serão: a consciência de si, a capacidade de comunicar, ter actos racionais, capacidade para resolver problemas. Dentro deste conceito, se um eventual ser-humano (o feto) não for também pessoa, então não tem direito à vida, pelo que é (ou pode ser) moralmente correcto destruí-lo. Filosoficamente, este conceito é aceitável.
Mas aqui, o grande problema também reside em definir o momento em que esse ser vivo passa a ser pessoa. Quando é que embrião/feto passa a ser o que antes não era? Nunca ninguém encontrou essa resposta e a sua procura, no limite, leva a admitir que uma criança recém-nascida ainda não é pessoa, e admitir a possibilidade do infanticídio. [que nos EUA é legal em situações especiais]
Juridicamente, e no pressuposto do embrião/feto não ser uma pessoa com direito à vida, a coisa também fica complicada e híbrida: por um lado a criança concebida mas não nascida é sujeito legal – pode herdar e até tem direito a indemnização, caso lhe seja provocada deficiência durante a vida embrionária), mas pelo outro lado não tem direito à protecção da lei geral, sendo permitido tirar-lhe a vida.

No fundo, esta nunca poderá ser uma questão de vida ou não-vida mas sim uma questão de escolha entre direitos. Em 1973 o acórdão do Supremo Tribunal, que deu início à liberalização do aborto nos EUA, expôs esta contradição com simplicidade: para escolher o momento até ao qual fazer um aborto não incorre em pena, há que arbitrariamente determinar um meio termo entre o direito da mulher a decidir e o direito da criança à vida. Arbitrariamente, foi indicada a 18ª semana.

Fim do terceiro acto. Acredito que, quer em termos biológicos quer filosóficos, a vida se inicia com a concepção/fecundação. A decisão de permitir o aborto, até determinada altura, nunca poderá residir na presunção que não existe vida mas sim na opção de privilegiar o direito de escolha da mulher. A pergunta que deixo é: até onde pode ir esse direito de escolha?

1 comentário:

Anónimo disse...

O snc do novo individuo ponto domina o ciclo mestrual da mae.

Foi muito bem diseminado o assunto sobre o sistema nervoso.

Parabens....