28 de agosto de 2005

SARCASMOS Il

Numa tarde de calor, daquelas que apetece tirar a pele ou encostar numa sombra e bater uma bela sorna, não estava nada moralizado para ir plantar-me à porta de um Banco na Praça de Alvalade. A canícula, potenciada pelo doentio bulício dos automóveis e aviões, não deixava só os cães de língua de fora. Ao quarto de hora para o meio-dia, lá estava, a render o camarada, semi-desidratado e com as pernas a pesar toneladas. Feitos os cumprimentos da praxe, ali fiquei, para cumprir mais quatro horas de serviço remunerado ao BPSM. Já tinha decorrido meio turno, quando um sujeito, de aspecto distinto e na casa dos sessenta, dirigiu-se até mim e à laia de capataz em conversa com seus serviçais interpelou-me nos seguintes termos:

- Onde fica a Rua Aboim Ascensão?

Assim como estava, a olhar para o outro lado da Praça, assim me mantive e fiz de conta que não tinha ouvido a pergunta do interlocutor.

- Onde é a Rua Aboim Ascensão? – insistiu o homem – estou a falar consigo.

Não sendo particularmente devoto de nenhum santo e muito menos do Santo António, que sofria por imposição, no cimo do seu pedestal, os rigores do astro rei, olhei mesmo assim para ele e telepaticamente apelei que me emprestasse umas doses extras da sua paciência. Ele há coisas que não tolero, mas a falta de educação e a arrogância, estão à cabeça.

- Boa tarde – reagi, perante nova insistência.

- Onde é a Rua Aboim Ascensão?

Arre, o tipo, além de elevado défice educacional, das duas uma, ou era teimoso ou duro de ouvido.

- Boa tarde – insisti.

- Eh! Pá, está bem, boa tarde – acabou por soltar, a custo, acusando o toque – onde é a Rua Aboim… – este enfastiamento caiu-me pior que a falta de educação do homem. Nem o deixei acabar, e repliquei, mantendo o olhar no Patrono da cidade:

- Não sei.

- Não sabes? – o tom mudara da arrogância para a estupefacção digna de uma virgem humilhada na sua honra, sem contudo perder o porte magnânimo de um Imperador perante um plebeu – Mas devias saber.

Perante a impossibilidade de termos frequentado a mesma escola, ou de termos alguma vez partilhado brincadeiras juntos, não me caiu nada bem o tratamento familiar com o qual aquele cidadão se dirigia a mim.

- Devia saber porquê? Já agora, conhecemo-nos de algum lado? Não será da escola com certeza?...

O arrogante sujeito, acusou a segunda estocada e ameaçava entrar em parafuso. O bófia estava a dar luta.

- Porque é polícia, ora essa! Tem de saber… – argumentou.

- Pois… e por acaso tem ideia onde ficará essa rua? Tem alguma referência, uma farmácia, repartição, loja, qualquer coisa que possa servir de referência? É que assim, pelo nome, não sei.

- Então veja no roteiro.

- Lamento, não tenho roteiro, ainda não me foi distribuído, mas se aguardar um pouco, posso perguntar para a minha central, via rádio.

- Pois, devia conhecer a área onde faz serviço.

- Lamento informar, mas esta não é a minha área. A minha Esquadra é na Serafina; aqui só faço serviço ocasional ao banco.

- É incompreensível. É a primeira vez que vejo um polícia que não conhece as ruas de Lisboa!

- Sabe, não sou de cá, sou do interior e quanto a conhecer polícias com essa capacidade, posso dizer-lhe que me leva vantagem.

- É aberrante! Há mais de 40 anos que moro aqui e é a primeira vez que, além de me tratarem como você o fez, que encontro um polícia que não sabe as ruas… trazem esta gente da parvalheira para cá e depois querem segurança.

Ao ouvir estas palavras, mais do que a ofensa à minha condição de patego provinciano, fiquei furibundo com o cromo, que afinal morava ali e não conhecia uma artéria, que por sinal eu conhecia por ser adjacente à Esquadra do Campo Grande. Não lhe indicara logo a rua em virtude da forma como o fulano entrara a “matar”.

- Aberrante, aberrante, é o senhor achar que eu, vindo lá da província, estando em Lisboa há pouco mais de um ano, deva saber as ruas todas de Lisboa enquanto que, sendo você morador no bairro há 40 anos, não conhece as do sítio onde mora. Eu espero ainda vir a conhecer algumas.

- Talvez não tenha essa capacidade - grunhiu o palerma.

- Sabe, diz-se na minha cidade, que burro velho não aprende, entre outras coisas, línguas, por isso, espero chegar a velho e ter aprendido algumas... e já agora umas ruas também.

O tipo, ficou durante uns segundo, ali, olhando-me, abrindo e fechando a boca como um peixe fora de água, sem saber o que dizer. Pensei por momentos que o fulano ia explodir, disparatar comigo e apresentar queixa na Esquadra pela minha ousadia. Pelo contrário. Sem a mesma pose com que me abordara, baixou o olhar, deu meia volta e disse:

- Passe bem, Sr. Guarda. Bom serviço.

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