Hoje tenho de escrever sobre sexo. Peço desculpa aos mais pudicos e sensíveis à questão, mas não pode deixar de ser.
Nos últimos dias tenho ouvido e lido opiniões de alguns mestres de direito sobre se a recusa de actividade sexual pode ou não ser considerada uma violação de dever conjugal.
É com espanto que leio e releio. Não porque tais opiniões não estejam juridicamente fundamentadas e bem fundamentadas mas porque me parecem inconcebíveis à luz da vivência social em pleno século XXI, num país como o nosso.
A própria letra da lei começa a não fazer sentido quando fala em deveres. Quando duas pessoas se unem fazem-no por uma vontade de construir algo em comum. Respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência são uma consequência natural dessa decisão que deve ser livremente tomada. E, na minha opinião, revogada quando assim deixa de ser.
Das opiniões emitidas parece resultar uma perigosa presunção. Presume-se que, ao casar, os cônjuges dão o seu consentimento mútuo à prática de actos sexuais. Permito-me, modestamente, discordar. O consentimento para o acto sexual deve ser instante, ou seja, actual. A ninguém deve ser permitido exigir a entrega física e emocional que o acto sexual deve pressupor, apenas e só porque se presume que, sendo o estado civil de casados, tal é suposto acontecer. Seria acrescentar ao contrato de casamento uma cláusula em que as partes abdicavam da sua autodeterminação sexual. Tal não me parece legítimo.
Mas mesmo procurando na letra da lei em parte alguma se encontra tal dever.
Provavelmente será com base nessa presunção de consentimento que alguns defendem a impossibilidade da existência do crime de violação quando violador e violada estão “unidos” pelo matrimónio. Estranha teoria que mais uma vez não tem qualquer correspondência na letra da lei.
“Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”. Este é o texto do n.º 1 do Artigo 164 do Código Penal. E como podemos verificar não excepciona ninguém.
Tais teorias só podem estar baseadas no preconceito de que seres humanos podem pertencer uns aos outros. O preconceito começa na linguagem e acaba na prática diária. Quantas vezes nos questionamos sobre o valor das palavras quando dizemos “a minha mulher” ou “o meu marido”? Não estaremos nós a interiorizar um sentimento de posse? De que o outro nos pertence, independentemente da sua vontade imediata, porque contratualmente assim se estabeleceu?
Talvez seja tempo de percebermos que as pessoas se unem e se separam livremente e não por qualquer obrigação legal ou moral.
Respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, mesmo assumindo que são deveres são-no reciprocamente.
Não estou a defender que as relações entre as pessoas se transformem em algo de tão volátil e inconstante que não saibamos hoje em quem confiar amanhã. Estou apenas a defender que as entregas devem ser recíprocas, voluntárias e instantes e não por obrigação contratual.
Afirmava Proudhon que toda a propriedade é um roubo. Estejamos ou não de acordo com o famoso anarquista, teremos de concordar que as relações baseadas na propriedade e posse de seres humanos são mesmo crime.
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