22 de março de 2004

Saramago e a lucidez

José Saramago vem de livro novo daqui a pouco, Ensaio Sobre a Lucidez. Li entrevista com ele no Estadão de ontem. Estava vitriólico, vociferando contra o poder econômico que tomou conta do mundo, segundo diz e crê. A certa altura, deu uma resposta estranha: perguntado se sua obra era pautada pelo tema (e pelo temor) da despersonalização, da perda da própria identidade, saiu pela tangente. Respondeu que esse é um tema importante, mas secundário num mundo em que morre um ser humano de fome a cada quatro segundos. Certo, OK, muito bem; mas, a despeito disso, sua obra fala ou não fala sobre a perda da identidade? Se falar, ele está se referindo a si mesmo como um autor de temas secundários? Crê que o próprio ofício de escrever, num mundo assim, é também secundário? Que propõe que um escritor faça ante uma realidade dessas? Não lhe perguntaram. Saramago tem seus handicaps. É chegado numa tautologia, é caudaloso, verte seu texto num português de que nem sempre temos saudades aqui no Brasil. Depois de nobelizado, deu um fora tremendo ao taxar de nazistas certas ações de Israel, e levou pito público de Amós Oz. É comunista histórico, e raciocina segundo os termos desse credo (na Folha, reclamou da "direitização" do Lula). É odiado por muitos. Mas é um escritor importante; erra, dá cabeçadas, mas fala do homem e da, vá lá, condição humana com amplitude. A maioria dos novos escritores, daqui e de fora, não vai além de falar de si mesma, ou de situações sexuais-sentimentais que todo ser humano atravessa entre os dezessete e os trinta e sete. Presto atenção nele.

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