9 de janeiro de 2012

O encanto da matemática


"O  meu filho mais velho anda as aranhas com a Matemática. Enquanto a Helena se preocupa  seriamente, pela minha parte sinto uma alegriazinha  muito secreta.  
Então não é verdade que nós, gloriosos e felizes pais do reino, desejamos encontrar nos nossos filhos um bocado de nós próprios?
É evidente que de modo nenhum dou a entender à criança que eu, quando estudante, era razoavelmente pior.
Pelo contrário, costumo estimulá-lo, incutir-lhe confiança, demonstrar-lhe (sabe Deus como!) que a Matemática é uma coisa encantadora e que ele deve, para seu bem, procurar compreender o que o professor lhe explica.
Mas o rapaz não esta absolutamente nada convencido. Só ainda não declarou, peremptoriamente, que decide abandonar de vez o estudo, porque o dispensamos de tomar decisões dessa natureza, desde o dia em que resolveu comprar os cromos e a caderneta da descaradona Cleópatra utilizando, para a transacção, as três moedas de vinte e cinco tostões da sua colecção de quatro.
De modo que, por via das regras estabelecidas a partir da ‹‹Cleópatra››, o António Manuel evita tomar decisões importantes.
Ele continuará, portanto, a estudar Matemática até porque me parece de extrema importância resolver problemas que, no futuro, lhe serão de imensa utilidade.
Por exemplo. «Uma dona de casa comprou por 14 escudos uma ração de carne de 21$5O cada quilo. A carne comprada contém l/5 do seu peso de ossos, que são retirados. A parte limpa é transformada em 7 bifes, perdendo 3/l0 do seu peso, na frigideira. Quanto pesa cada bife feito?». Eu não fui capaz de resolver.
Como vêem, trata-se, em primeiro lugar, de um problema desmoralizante. Não posso explicar a criança, nem mesmo com muito boa vontade, que 14 escudos de carne, com l/ 5 de ossos, só pode dar 7 bifes em casa do senhor professor que inventou o problema. Como também não me é possível ajudá-lo naquele outro exercício, segundo o qual três autocarros partem à mesma hora da mesma paragem. Ora todos nós sabemos, cá em casa, que o rapaz ia tem ido a pé para a escola por não partir nenhum autocarro dentro do horário e na mesma paragem.
Mas eu resisto. Até mesmo quando se põe o caso do empregado que comprou uma mobília de quarto por 3.6OO$OO para ser paga em 24 prestações.
Se eu explicar, calmamente, ao rapaz o tremendo problema, estou a ver a sua cara de infeliz ignorante quando um dia puder tomar decisões e verificar que no custo da mobília só as 24 prestações é que estavam certas.
Só tenho um caminho: solidarizo-me com o professor e insisto para que ele resolva as questões. É preciso que alguém resolva estes problemas.
Não obstante eu ter sido um espectacular falhanço na Matemática, creiam que ficaria muito feliz ao saber que o meu filho, loira criancinha coleccionadora da «Cleópatra››, tinha resolvido os problemas da carne, dos autocarros e das mobílias de quarto".


Um belo texto dum grande jornalista português, António Rolo Duarte (pai). Gostaria de ler as suas crónicas publicadas em livro.
1966


6 comentários:

teresa disse...

Muito bom e, conscientemente ou não, a tocar nos «estádios» de desenvolvimento de Piaget. A Matemática ensina-se (ou deveria ser ensinada) de acordo com a faixa etária dos destinatários, e o texto dá precisamente conta disso. Vou guardar esta crónica:)

T disse...

O Rolo Duarte escrevia muito bem e as histórias que conta, baseadas na experiência familiar, são deliciosas. Acresce o facto de eu ter conhecido o rapazinho António Manuel, através da net, e muito gostaria de lhe mostrar esta crónica. Infelizmente ele já não está entre nós. Recordo-o com saudade e amizade.

teresa disse...

Escrevia, sim, o meu pai não perdia uma crónica dele... E queria ter escrito «estágios» no meu comentário anterior:)

Luísa disse...

A minha relação com a matemática sempre foi como a do meninno, se bem que as perguntas que o pai levanta são bem válidas.
Se muitos dos exercícios que me apareceram à frente tivessem sido feitos com lógica, e com correcção do português, não teria perdido o interesse pela coisa. A minha mãe estava como o pai, não me deixava tomar decisões importantes, mas eu cedo (infelizmente!) aprendi a mentir-lhe (e bem!) no que respeitava à matemática...

E como sempre no Dias, mais um texto altamente actual e interessante, apesar de ser do "século passado".

Quanto aos "estádios" e "estágios", Teresa... mais uma coisa que durante muito tempo não entendi: a minha professora de filosofia/sociologia usava os dois nomes na mesma aula!!!!!!!!!!! :s

teresa disse...

Ambas as designações são válidas, fazem sentido e não se contradizem, Luísa (já vi as duas versões nos 'buques'). Incrivelmente é uma teoria que ainda vigora (por ter constatado a sua aplicação na prática e me parecer vivamente aconselhada, em modesta opinião). Admirei muito a professora de 1º ciclo da minha filha mais nova que conseguiu - através de um método muito próprio - ensinar com sucesso a divisão a miúdos de 7 anos, enquanto outros de outras salas não a conseguiam efetuar (diziam-me as mães minhas conhecidas que era por ainda não ser conteúdo a ensinar a essa faixa etária, o que algumas práticas adequadas à idade desmentiram).

Miguel Gil disse...

A crónica é de leitura muito agradável.
Ao contrário de outros, apesar de não ser bom aluno, sempre adorei a Matemática.
Sempre vi a Matemática como a explicação dos nossos raciocínios.
Um dos meus primeiros trabalhos, aos 17 anos, foi dar explicações a um 'repudiador' da Matemática e adorador de futebol. Ensinei-lhe futebol usando a Matemática e Matemática usando o futebol.
Mudou de opinião quanto à Matemática. Gooooooolo.