Sentado numa carruagem do Metro, local em que a “fúria” dos telemóveis atinge o rubro, escuto inevitavelmente a conversa telefónica de uma senhora a meu lado. Melhor, meia conversa, porque só ouvi uma das intervenientes, mas o diálogo havido é fácil de imaginar.
O telefone da senhora tocou, e foi assim:
- Está?
- Isabel?
- Olá tia, tudo bem? Sim, sou a Isabel.
- Ligaste ontem para mim?
- Liguei tia, mas como não atendeu fiquei preocupada.
- Preocupada porquê?
- Ora, como não atendeu, pensei que o tio António tivesse apanhado mais uma “cadela”, tivesse caído e batido com a cabeça nalgum sítio, e tivessem ido lá para o hospital de Abrantes.
- Não, filha, nada disso.
- Bom, ainda bem. Como é que ele se tem portado?
- Mais ou menos, sabes como é…
- Claro, esse maldito vinho estraga a vida dele e a sua…
- Que se há-se fazer…
- Bom tia, assim fico mais descansada. Vou agora ter com o Aníbal, temos de comprar a prenda de casamento para a Ana. Pronto, beijinho para si, adeus.
Desligado o aparelho, fiquei a pensar.
De repente, de uma desconhecida, sabia:
Que se chama Isabel, que tem família perto de Abrantes, um tio António bêbedo que aprecia tanto os vapores do álcool que, por vezes, vai parar ao hospital, que o marido dá pelo nome de Aníbal, e que em breve irá a um casamento. O da Ana.
Uma simples conversa telefónica, em público.
Nada recatada.
Há quem não goste de privacidade…
3 comentários:
Lindo!!! Gotta love it!
E às vezes ouve-se com cada pérola que fica para a história!
Há uns tempos, na fila para pagamento numa loja de Centro Comercial, também assisti à metade de um diálogo que rezou assim,
- olá mãe, estás melhorzinha?
- que chatice, deixa-te estar deitada
- pois, ontem não te liguei porque cheguei a casa e deitei-me
- estou só com febre, mãe, não te preocupes. Só não posso ir hoje aí porque estou de cama
(…)
- beijinhos e as tuas melhores, se precisares liga, se for preciso vou aí
E, dos que estávamos à volta - abalroados em alta voz com informação não solicitada, inevitavelmente a tecer julgamentos ainda que tal dispensássemos -, uns sorriram irónico, outros amarelo, outros fizeram de conta, enquanto a senhora do telefonema, indiferente, lá continuou na fila até chegar a sua vez.
Diz Gabriel García Márquez, em Vivir para Contarla, que todos temos três vidas, a pública, a privada e a secreta. Parece que se vêm desprezando as fronteiras. Despindo-se de pudores, esquecendo o respeito próprio e o devido aos outros, há quem não só dê a saber a sua vida privada, como nos constrinja a tomar conhecimento dela.
Gostei do post, como do anterior, do anterior... do olhar aguçado a agarrar o quotidiano e a dele fazer crónica. Parabéns.
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