21 de abril de 2009
Antes de Abril: fragmentos do neo-realismo
Augusto Gomes, Os Pescadores, óleo (1962)
Lisboa tinha um centro. Um centro natural aonde toda a gente acorria na amarela mansidão dos eléctricos, para fazer compras, tomar café, ver gente. Para saber, hora a hora, como iam as coisas em Espanha. Para ter notícia, enfim, do “que é que há”, já que tudo se passava (diria passar-se) nesse palmo de ruas e casas que vai do Rossio à Praça de Camões. (…) Foi aí, nesse clima exaltante de encontro e de largada, que conheci o Manuel da Fonseca. (…) Líamos muito Dostoievsky, (…) uma obstinada recusa a ser feliz num mundo agressivamente infeliz, uma ânsia de dádiva total e o grande sonho de criar uma literatura nova (…) contra o egoísmo, os interesses mesquinhos, a conivência, a indiferença perante o crime, a glorificação dum mundo podre.
E na convicção, também, assaz ingénua, que só a vulgar injustiça da fogosidade juvenil naturalmente ditava, de que toda a arte que não fosse essa, precisamente essa com que se sonhava, mais não fazia, no fundo, do que ajudar a prolongar o mundo detestável. Porque o neo-realismo(…) foi assim que surgiu. Assim, apenas assim, espontaneamente, da inquietação, da generosidade e da ingenuidade – da fecunda, exaltante fraternal ingenuidade – desses tantos jovens que foram ao encontro uns dos outros pelo seu pé, irresistivelmente movidos por um mesmo espírito de recusa, uma mesma esperança no homem (que eles sabiam só poder querer dizer: os homens), uma mesma necessidade interior de dizer tudo isso em versos, em romances, em contos capazes de acordarem um país inteiro para a sua própria realidade nacional. Que não eram só os cafés das cidades, a das academias e a das revistas literárias anti-académicas, como em breve se começou a ver, sobretudo no romance, quando os gaibéus, as campaniças, os gandareses apareceram em livros que, embora pouco bem recebidos pela gente do ofício, depressa conquistaram um público vasto e novo, para o qual até então a literatura não existia.
Prefácio de Mário Dionísio a Poemas Completos de Manuel da Fonseca (transcrito com supressões)
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2 comentários:
Realmente "Crime e Castigo" foi das obras mais violentas que li. Recordo que, na altura, até me senti doente...
"Humilhados e Ofendidos" foi uma leitura fascinante, inquietante e triste...
Olá Rosarinho,
Na altura, ainda jovens, as leituras eram diferentes. Penso que a miudagem de hoje é tratada até mais tarde com "certos cuidados", para usar um eufemismo. Lá por casa havia os neo-realistas - saltando para o caso nacional - e comecei a lê-los bem cedo, sem o atractivo das capas pois, vá-se lá saber porquê, os livros de um dado período de tempo estão quase todos encadernados de modo muito uniformizado (penso que era iniciativa do meu avô V.). Os Gaibéus, Marés e Avieiros encontram-se todos no mesmo volume, de um azul indefinido. Por outro lado, resistem mais ao tempo e ainda estão em bom estado, embora com as páginas amareladas pelo tempo (alguns ainda têm dentro bilhetes antigos de eléctrico e de autocarro, os marcadores da época):)
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