8 de fevereiro de 2009

«Matar o Bolo»


E
u devia ter uns dez anos de idade. Era o dia de conhecer a minha bisavó. Naquela idade, uma avó ou um avô é o topo da hierarquia da antiguidade, pelo que bisavó já seria algo de difícil localização no espaço-tempo.
Não me lembro do nome da minha bisavó. E não posso telefonar à senhora minha mãe agora porque, antes que eu perguntasse alguma coisa, certamente iria ouvir: «Ó filho, nunca me ligas. Não me ligas há três dias. Tanto que sofri para te ter. E aos dezoito anos fugiste de casa. Para um parque de campismo. De Inverno. Mas que grande amor era esse, que deixas os teus paizinhos e foges com uma namorada? E ainda por cima a pensares que ias ser rico a vender jornais e a viver numa tenda. Ó filho, sofri tanto para te ter. Foste a minha lua-de-mel. Engravidei logo. Só tenho olhos para ti. Ó filho, sofri tanto para te ter. Ó filho, ainda vives com a mesma? Ó filho, eu não posso morrer sem estares assente na vida. Ó filho, sofri tanto para te ter e agora não gostas de mim. Estás tão magrinho. És tão bom filho.»
Portanto, não posso telefonar a saber o nome da bisavó. E é sobre ela esta pequena história.
O pai do meu pai morreu muito jovem. Trinta e três anos. O meu pai foi para a Casa Pia, e sei que na altura, para além do pretexto de lhe darem uma boa educação, também foi com o objectivo de a minha avó refazer a sua vida com aquele a quem eu viria a chamar sempre avô. O meu avô. Este pormenor é importante porque julgo que a nossa visita ocorreu um pouco na clandestinidade.
Lá fomos para o Alto dos Sete Moinhos. Chegámos lá e de imediato reconheceu o meu pai. A tarde toda lá sentados. Perplexos. Como é que a senhora com quase cem anos estava tão lúcida? Ouviu as nossas histórias. A minha mãe constantemente a olhar para o meu pai como quem diz «Que bem que ela está, Rodrigo». O meu pai para mim: «Vês, Rui? Impecável e com quase cem aninhos.»
Estávamos tão contentes.
A senhora que se encarregava de tomar conta da velhota só dizia «Pois, pois».
Começámos a despedir-nos. A minha avó virou-se para o meu pai e disse:
«Fernando [a olhar para o meu pai, Rodrigo], dá-me aí a faca.»
«Para quê, avó?», disse o meu pai.
«Para matar o bolo que vocês, meus palermas, trouxeram e que ainda não parou de olhar para mim.»















Um dos Sete Moinhos, no Casal das Andorinhas.
Alto dos Sete Moinhos (Freguesia do Santo Condestável).
Fotografia: Eduardo Portugal - 1940 - Arq. CML.

3 comentários:

teresa disse...

Que texto "delicioso" (influências do bolo), Rui.
Bem-vindo ao "Dias"!

T disse...

Eu adoro o fim:)
Bem-vindo!

carlos disse...

muito bem vindo luís :)