Assim começa “Thais” de Anatole France. Poderia ser uma outra mas a tradução que tem em mãos é a que o avô fez.
O avô era um autodidacta e aprendeu francês sozinho. O filho um dia disse-lhe que ele também podia aprender inglês mas ele respondeu-lhe que inglês não era língua de gente. Traduziu, também de Anatole France, “A Ilha dos Pinguins”. Essas traduções ainda as mantém, em cadernos lisos, numa letra pequenina, quase desenhada, muito bonita e sem rasuras.
O avô era um republicano histórico, anticlerical e benfiquista. Era caixeiro-de-praça do “J. Português da Silva”, casa de tecidos e derivados, ali na esquina da Rua dos Fanqueiros com a rua Condes de Monsanto, bem junto à Praça da Figueira. O estabelecimento ainda lá está, continua a vender trapos, mas agora dá pelo nome de “Bruxelas”, qualquer coisa entre a “Zara” e o não se sabe bem o quê. Percorria os bairros de Lisboa, vendendo linhas da “Senhora da Hora”, uma fábrica junto ao Porto, com uma enorme e pesada mala onde se encontrava o mostruário das linhas de coser e “crochet”, dos panos do pó, de cozinha.
O avô era um leitor compulsivo de livros de todos os géneros e de todas as literaturas. Quando terminava a leitura de um livro, punha um sinal a lápis na palavra fim.
Quando morreu aos 92 anos tinha na mesa-de-cabeceira as “Confissões de Jean-Jacques Rousseau, um calhamaço de 642 páginas na edição da “Portugália. Editora”. Teve a morte mais bonita por que se pode ansiar, se é que isto alguma vez se possa dizer… Estava à mesa, pela manhã, a conversar com o filho - “eh pá! Uma dorseca aqui no peito” – a cabeça caiu-lhe para a frente e ficou-se em segundos. Assim como quem chama pela serenidade e ela vem. O filho ficou sempre com a sensação de que o pai estivera à espera que ele se levantasse da cama para então morrer.
O avô é o responsável pelas coisas mais memoráveis, mais maravilhosas da sua adolescência. Amiúde dizia que um dia, quando ele tivesse um ordenado, não deveria gastar mais, um tostão que fosse, do que aquilo que recebia. O trabalho honesto é aquilo que de melhor pode acontecer a um homem, vais ver que no fim serás recompensado. Os sábios conselhos do avô sobre o trabalho honesto coroavam-se de um aviso de que deveria livrar-se do luxo e da soberba.
Pelo Natal dava-lhe pares de meia de lã altas – ele usava calções. Mas desejava como prenda um Mecano, ou uma caixa de madeira de dois andares para pôr os lápis, as canetas, as borrachas, o apara-lápis, como tinha a maioria dos rapazes da escola. Nunca teve nem uma coisa nem outra. Perante os seu tímidos protestos rematava que as meias eram coisas que lhe faziam falta e que eram mais úteis que essa cangalhada toda que ele queria.
Quando o Benfica não jogava em casa pagava-lhe o bilhete para as matinées do “Cine-Oriente” onde viu os filmes do seu contentamento, dois filmes por vinte e cinco tostões. Todos os meses dava-lhe cinco escudos para cortar o cabelo e corta-o bem curto para o ires fortalecendo, dizia. Amava o silêncio do mesmo modo que os poetas, e os místicos, tendem para o silêncio. O avô era um poeta. Considerava que só se devia falar quando houvesse coisas interessantes para dizer. Gostava de chá e no Inverno, sentado num maple, com uma manta nas pernas, via televisão, ainda a preto e branco, com o gato aconchegado nas pernas. Ao longo da noite acariciava-o devagar, muito devagar mesmo.
Esta invocação de “Thais”remete-o, para alguns jantares com o pai. Quando as garrafas já iam adiantadas e a filosofia escorria pelo vidro dos copos, citava o início do “Thais” em francês: “En ce temps-là le désert etait peuplé d’anachorètes.”
Depois acrescentava-lhe a tradução. Ficava durante alguns segundos com o braço no ar, um sorriso ao canto da boca, os olhos perdidos não se sabe onde.
Gosta de ficar a pensar que o seu fascínio por começos de livros, talvez venha do tempo desses jantares com o pai.
“En ce temps-là...”
Texto e Imagem de Gin Tonic
4 comentários:
belo texto
Boa estreia:)
queremos mais! ;)
E temos mais. Pranto outro?
Enviar um comentário