- Doutor, preciso de lhe pedir uma coisa...
Disse esta frase depois de uma pequena pausa, depois do longo e costumeiro monólogo, depois de despejar toda a verborreia, todas as histórias dos últimos quinze dias, do cão que já está quase cego, da prima ainda mais doente que ela e da filha que está longe e liga pouco. Como já a conheço muito bem, aproveito para escrever na ficha médica "Clinicamente bem" ou "Na mesma...", pedir as análises do costume e passar as devidas receitas. A dona Flôr tem um Crohn com anos e anos de evolução - acho que com mais anos do que os que eu tenho de idade - já passou por inúmeros médicos, já fez várias cirurgias, já teve uma colostomia e não liga nada ao que eu lhe digo. Por isso desisti, desde há muito tempo, de lhe dar conselhos... limito-me a tentar detectar alguma complicação que possa ocorrer e dizer que sim a todas as decisões que ela toma, mesmo que me pareçam muito pouco razoáveis.
Assim, quando largou aquele anúncio de "um pedido", saí do meu alheamento...
- Diga lá o que é que precisa, dona Flôr
- É que eu ando a querer comprar um carro novo...
- ... ??
- E com estas minhas doenças todas... com estas complicações todas... podem-me dar incapacidade!
- Sim.
- Eu do doutor só preciso de um relatório completo da minha situação...
- Ahh, um relatório...
- É que assim junto aos dos outros médicos e vou à Junta... Se me derem a incapacidade não pago os impostos e o carro fica muito mais barato!
- Está bem, dona Flôr, eu passo-lhe um relatório dos seu problemas intestinais. Venha cá na semana que vem que já estará pronto!
E lá lhe passei o relatório, circunstanciado e exaustivo, onde explicava todas a cirurgias a que tinha sido submetida e as dificuldades funcionais que padecia.
Passado alguns meses, voltou à consulta. Estava bem menos faladora e tive que ser eu a puxar por ela, a perguntar-lhe pelo cão cego e pela prima doente. Até que me lembrei e lhe perguntei:
- E o carro novo, dona Flôr?
- Não comprei...
- Não? Mas então porquê?
- Tiraram-me a carta!
- Tiraram-lhe a carta? Ó dona Flôr, não me diga que fez alguma?
- Não doutor... Ela é que exagerou!
- Ela?
- Ela... A doutora Rosa da Neurologia exagerou... Também fez um relatório da minha Miastenia Gravis e disse que eu não tinha força nos braços, nas pernas.... sei lá que mais!
- Ahhh...
- E quando lá cheguei mandaram-me para o Delegado de Saúde que disse que eu assim não podia conduzir...
- ...
- E tirou-me a carta!
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