15 de dezembro de 2006

acontece sempre por esta altura do ano a apetência para balanços e classificações.

estaria por agora na altura de falar sobre os grandes concertos em que tive o prazer de estar presente esta ano.

por uma razão estranha (talvez a comparação), veio-me à memória um dos melhores concertos a que assisti durante toda a minha vida (e acreditem que assisti a umas boas centenas)

em 1971 os concertos em portugal eram mais raros que o lince ibérico e, talvez porque a censura era burra, autorizava mais facilmente um festival com uma série de nomes sonantes do jazz famosos, também, pelas suas posições políticas, que um qualquer concerto de músicas cantadas.
para eles o jazz eram só notas...

no dia 20 de novembro de 1971 eu, e umas 12 000 pessoas, fomos em romaria até ao pavilhão do dramático de cascais.

Image Hosted by ImageShack.us
era o primeiro festival de jazz em portugal.

o cartaz era algo de simplesmente deslumbrante:

e logo para para abrir o festival, miles davis com um sexteto de luxo: keith jarrett (piano eléctrico), gary bartz (saxofone), james foreman e don alias (percussão), michael henderson (baixo eléctrico) e leon chandler (bateria).
um experimentalismo a que ninguém estava habituado (nem mesmo os especialistas presentes, a avaliar pelo que escreveram nos dias seguintes).
a começar pelo número de amplificadores instalados no palco e produzir um volume 'decibélico' absolutamente inusitado em concertos de jazz.
depois, miles davis aparece com um trompete amplificado e ligado a um pedal de efeitos e aquela pose dobrada sobre o trompete como que a envolver-se num único corpo fechado.

Image Hosted by ImageShack.us
keith jarrett, no seu piano electrico a fazer tremer de vergonha quaisquer gurus do rock sinfonico a que estavamos habituados.
gary bartz, acabado de chegar ao septeto, vinha de trabalhar com os art blakey's jazz messengers, charles mingus, mccoy tyner, e estava numa forma absolutamente impressionante.
michael henderson, que trabalhava com gente como marvin gaye, aretha franklin, stevie wonder, ou doctor john, dava a base funky sobre a qual improvisava miles davis e, também já, keith jarrett.
na percussão, um trio de luxo: don alias (falecido este ano..), james foreman e leon chandler


ainda o efeito não tinha passado, e ele ali estava:

ornette coleman, himself !!!

acompanhado por dewey redman (sax tenor), charlie haden (contrabaixo) e ed blackwell (bateria).
este foi o concerto que mais famoso ficou, por razões não directamente relacionadas com a música, mesmo que a música por si só bastasse para ter ficado na memória.

quando charlie haden dedica o tema 'song for che' aos movimentos de libertação africanos, dois panos brancos abrem-se na bancada superior a suportar a dedicatória com um 'abaixo a guerra colonial' e um viva à guiné livre.
se já antes o ambiente era efervescente pelo música demolidora de ornette coleman, então foi o caos total com a pide em polvorosa, os punhos erguidos da assistência e um momento de entusiasmo absolutamente único.
o quarteto acabou preso, charlie haden interrogado e joão braga (!!!), um dos organizadores a mostrar que tinha tomates para enfrentar a pide.

para o resto da noite já tudo era muito relativo...
um notável quarteto português, os bridge, formado por jean sarbib (contrabaixo) adrian ransy (bateria), kevin hoidale (piano) e um tal joão ramos jorge em saxofone, que mais tarde viria a ser conhecido por rão kyao.
e, muito madrugada dentro (umas 3/4 da manhã, se bem me lembro), dexter gordon, que noutra qualquer noite chegava e sobrava para encher o papinho, acompanhado de alguns músicos que faziam o jazz em portugal: marcos resende (piano) e novamente o jean sarbib e adrien ramsy.

acabou exactamente a tempo de meter pés ao caminho para apanhar o primeiro comboio até ao cais sodré.


como diz o anúncio:
há coisas fantásticas!!!

Sem comentários: