Este Ricardo Freire é absolutamente fabuloso. Tenho passado o dia a atormentar as outras protectoras, lendo-lhes excertos do que ele escreve. Até acrescentei o blog dele aos nossos links.
Não resisto e vou transcrever uma crónica maravilhosa sobre comida.
Eu sou bissexual, e vocês?
"Gourmet acidental
Afins de comer
(Xongas publicada originalmente no Jornal da Tarde, em 11/2/2002)
Apesar de (ainda) não ser reconhecida pela medicina, a verdade é que a comida é uma opção sexual como outra qualquer. Está provado que certos alimentos exercem, de um certo modo, um certo apelo erótico sobre certas pessoas. E isso não é errado.
Diferentemente do que se pensa, entretanto, o fato de alguém sentir atração sexual por comida não elimina necessariamente o gosto pelo sexo convencional. Quem ama a geladeira nem por isso é uma pessoa frígida.
Segundo essa nova maneira de encarar a sexualidade humana, todo mundo que sente prazer tanto com comida quanto com algum dos sexos tradicionais (oposto ou não) seria uma pessoa bissexual.
Não tem gente que diz que "no fundo, todo mundo é bissexual"? É por isso. Basta gostar de comida e mulher, ou de comida e homem, para ser bissexual.
A contra-revolução conservadora em curso nas últimas décadas fez com que as pessoas passassem a sublimar seu interesse erótico pelos alimentos. Temos vergonha de nossos instintos sexuais com relação à comida. Isso nos frustra e nos enche de culpa.
O problema é que, enquanto tentamos voltar a ser castos, a comida vai ficando cada vez mais oferecida. Espevitada. Descarada, mesmo. Nunca na história da humanidade a comida esteve tão produzida, maquiada, perfumada, provocante.
Nos primórdios eram só as frutas que se insinuavam sexualmente para cima da gente. A intenção era puramente procriadora: elas queriam nos entregar suas sementes para que fossem espalhadas pelo mundo. Aquele perfume irresistível, aquela cor abusada serviam apenas para os nobres propósitos de perpetuação da Natureza.
Hoje em dia, não. Qualquer comidinha à toa se traveste em embalagens coloridas, fluorescentes, platinadas, com letras sensuais e maneiras de abrir que poderíamos classificar como depravadas. Sim: existem embalagens que você abre e elas gemem, miam, suspiram de prazer antecipado.
E por acaso você ajuda a espalhar a semente do que comeu? Nananina. A única coisa que você pode espalhar é lixo, caso não jogue a embalagem no cesto.
E os intervalos comerciais na televisão, então? Pornográficos, para dizer o mínimo. "Uga Uga" e "O Quinto dos Infernos" não são nada, perto de qualquer propaganda de chocolate.
Ah, as propagandas de chocolate. Aquela chuva de amendoins cravejando a barra gigantesca, que depois é lambuzada por uma camada obscena de doce de leite, para então mergulhar voluptuosamente numa piscina de calda de chocolate quente -- se isso não for sexo explícito, eu não sei mais o que é sexo explícito.
Quando você é uma pessoa que sente atração sexual por comida, fica difícil esconder sua excitação. Sua boca saliva. Seu pescoço coça. Sua atenção vai para o espaço. Você está apaixonado.
O pior de tudo é que a sociedade mantém você preso a um casamento de conveniência com as saladas, os legumes (de preferência, só os verdes e amarelos) e todas as coisas que venham com o logotipo da NutraSweet impresso no rótulo. Trata-se de um relacionamento sem prazer, que há muito já deu o que tinha que dar.
Então você trai. Trai o brócolis com um Big Mac. Trai o peito de frango grelhado com um leitão pururuca. Trai a gelatina diet com um Chandelle chocolate branco.
São escapadelas apenas -- você pensa. Nada mais que um relacionamento fortuito e ocasional. Mas é aí que você se engana. Porque todas essas comidas se recusam a desaparecer da sua vida.
Quando você acha que tudo o que aconteceu entre vocês já passou, elas se intrometem em back-lights no seu caminho. Invadem prateleiras de supermercado. Compram espaços nos intervalos da TV. Parece que todas elas assistiram a "Atração Fatal" e resolveram imitar a Glenn Close.
Não resisto e vou transcrever uma crónica maravilhosa sobre comida.
Eu sou bissexual, e vocês?
"Gourmet acidental
Afins de comer
(Xongas publicada originalmente no Jornal da Tarde, em 11/2/2002)
Apesar de (ainda) não ser reconhecida pela medicina, a verdade é que a comida é uma opção sexual como outra qualquer. Está provado que certos alimentos exercem, de um certo modo, um certo apelo erótico sobre certas pessoas. E isso não é errado.
Diferentemente do que se pensa, entretanto, o fato de alguém sentir atração sexual por comida não elimina necessariamente o gosto pelo sexo convencional. Quem ama a geladeira nem por isso é uma pessoa frígida.
Segundo essa nova maneira de encarar a sexualidade humana, todo mundo que sente prazer tanto com comida quanto com algum dos sexos tradicionais (oposto ou não) seria uma pessoa bissexual.
Não tem gente que diz que "no fundo, todo mundo é bissexual"? É por isso. Basta gostar de comida e mulher, ou de comida e homem, para ser bissexual.
A contra-revolução conservadora em curso nas últimas décadas fez com que as pessoas passassem a sublimar seu interesse erótico pelos alimentos. Temos vergonha de nossos instintos sexuais com relação à comida. Isso nos frustra e nos enche de culpa.
O problema é que, enquanto tentamos voltar a ser castos, a comida vai ficando cada vez mais oferecida. Espevitada. Descarada, mesmo. Nunca na história da humanidade a comida esteve tão produzida, maquiada, perfumada, provocante.
Nos primórdios eram só as frutas que se insinuavam sexualmente para cima da gente. A intenção era puramente procriadora: elas queriam nos entregar suas sementes para que fossem espalhadas pelo mundo. Aquele perfume irresistível, aquela cor abusada serviam apenas para os nobres propósitos de perpetuação da Natureza.
Hoje em dia, não. Qualquer comidinha à toa se traveste em embalagens coloridas, fluorescentes, platinadas, com letras sensuais e maneiras de abrir que poderíamos classificar como depravadas. Sim: existem embalagens que você abre e elas gemem, miam, suspiram de prazer antecipado.
E por acaso você ajuda a espalhar a semente do que comeu? Nananina. A única coisa que você pode espalhar é lixo, caso não jogue a embalagem no cesto.
E os intervalos comerciais na televisão, então? Pornográficos, para dizer o mínimo. "Uga Uga" e "O Quinto dos Infernos" não são nada, perto de qualquer propaganda de chocolate.
Ah, as propagandas de chocolate. Aquela chuva de amendoins cravejando a barra gigantesca, que depois é lambuzada por uma camada obscena de doce de leite, para então mergulhar voluptuosamente numa piscina de calda de chocolate quente -- se isso não for sexo explícito, eu não sei mais o que é sexo explícito.
Quando você é uma pessoa que sente atração sexual por comida, fica difícil esconder sua excitação. Sua boca saliva. Seu pescoço coça. Sua atenção vai para o espaço. Você está apaixonado.
O pior de tudo é que a sociedade mantém você preso a um casamento de conveniência com as saladas, os legumes (de preferência, só os verdes e amarelos) e todas as coisas que venham com o logotipo da NutraSweet impresso no rótulo. Trata-se de um relacionamento sem prazer, que há muito já deu o que tinha que dar.
Então você trai. Trai o brócolis com um Big Mac. Trai o peito de frango grelhado com um leitão pururuca. Trai a gelatina diet com um Chandelle chocolate branco.
São escapadelas apenas -- você pensa. Nada mais que um relacionamento fortuito e ocasional. Mas é aí que você se engana. Porque todas essas comidas se recusam a desaparecer da sua vida.
Quando você acha que tudo o que aconteceu entre vocês já passou, elas se intrometem em back-lights no seu caminho. Invadem prateleiras de supermercado. Compram espaços nos intervalos da TV. Parece que todas elas assistiram a "Atração Fatal" e resolveram imitar a Glenn Close.
Pois muito bem. Segunda-feira eu falava que a atração erótica pela comida deve ser encarada uma opção sexual tão válida quanto outra qualquer. Sentir prazer com comida, é bom lembrar, não elimina necessariamente o gosto pelo sexo convencional. Quem gosta de comida e mulher -- ou de comida e homem -- pode se considerar bissexual, na boa.
Onde foi que eu parei? Ah sim. As comidas estão cada vez mais oferecidas e espevitadas, apesar de o pensamento dominante recomendar a castidade alimentar.
Imobilizado entre o puritanismo da sociedade e a extrema lascívia dos alimentos, o indivíduo que sente atração sexual por comida não tem muito a fazer -- a não ser tentar refrear o impulso erótico e resistir à promiscuidade inerente ao estilo de vida libertino e hedonista dos lipídeos e dos carboidratos.
O maior problema de quem tem prazer com comida é que, na imensa maioria dos casos, trata-se de um relacionamento que envolve dinheiro. E isso não é legal.
Essa coxinha está piscando só para você, ou ela faz isso para todo mundo? Aquela torta-mousse de chocolate branco estava gostosa de verdade, ou era só porque você estava pagando? Será que essa feijoada se entrega por amor a um funcionário da cozinha depois que você paga a conta e vai embora? Você jamais saberá.
A vida de quem tem, digamos assim, “tendência” para gostar de comida é assim: uma sucessão de pequenos “affairs” que duram segundos, minutos, no máximo algumas horas -- no caso de churrascos prolongados.
Alguns desses relacionamentos são anônimos (você nem sabe o nome do que está comendo) ou clandestinos (ninguém pode ver que você está traindo seu queijo branco de casa com um catupiry do trabalho).
Para conquistar mulheres, homens compram carros possantes e investem em jóias caras. Para conquistar homens, mulheres compram cirurgiões e alugam personal trainers. Felizmente, conquistar comida é muito mais simples: basta arranjar uma geladeira e um telefone.
A geladeira é a matriz. A companheira de todas as horas. É ela quem guarda todas as suas comidinhas papai-mamãe. Nunca é lá muito excitante, mas pelo menos ela nunca deixa você só na vontade.
Já o telefone é a aventura sempre à mão. Um ramal do mau caminho instalado na sua mesinha de cabeceira. O telefone é o gigolô que toma as providências para que a comida que você quer bata na sua porta dos fundos, a qualquer hora do dia ou da noite. É a sua ligação direta com o submundo das pizzas, os antros dos milk-shakes e o bas-fond do chop-suey. Perversão, teu nome é “delivery”.
Quando a pessoa sexualmente atraída por comida vai ao restaurante, é como se fosse para o motel. Tudo num restaurante é puro fetiche. A toalha. O guardanapo. Os copos de tantos tamanhos diferentes. A faquinha da manteiga. Ah, a faquinha da manteiga.
Então vêm os pratos, na exata ordem que você pediu. Úmidos. Molhadinhos. Lambuzados com cremes. Guarnecidos com purês. E acompanhados por pão. Para um amante de comida, não pode haver nada mais erótico do que massagear o prato com nacos de pão, absorvendo todos os fluidos que por acaso restem ao final do embate com a comida.
Mas em termos de intensidade de prazer, nada se compara ao buffet. O buffet é uma espécie de orgia na vida do indivíduo sexualmente atraído por comida. Ele mistura tudo, volta várias vezes à mesa e come tudo aquilo na frente de todo mundo. Depois ainda é capaz de continuar no salão, só para ficar assistindo aos outros se servirem.
De toda maneira, é errôneo pensar que todas as pessoas que sentem prazer com comida sejam compulsivas ou depravadas. De jeito nenhum. Existe quem busque um relacionamento duradouro com a comida amada.
Essas pessoas paqueram seus alimentos em lugares sadios, como a seção da feira no supermercado. Elas só vão para a cozinha com os alimentos quando sabem que terão o tempo suficiente para todas as preparações preliminares.
E quando elas precisam colocar pimenta no seu relacionamento, é simples: elas pegam a pimenta e colocam. "
Ricardo Freire
Onde foi que eu parei? Ah sim. As comidas estão cada vez mais oferecidas e espevitadas, apesar de o pensamento dominante recomendar a castidade alimentar.
Imobilizado entre o puritanismo da sociedade e a extrema lascívia dos alimentos, o indivíduo que sente atração sexual por comida não tem muito a fazer -- a não ser tentar refrear o impulso erótico e resistir à promiscuidade inerente ao estilo de vida libertino e hedonista dos lipídeos e dos carboidratos.
O maior problema de quem tem prazer com comida é que, na imensa maioria dos casos, trata-se de um relacionamento que envolve dinheiro. E isso não é legal.
Essa coxinha está piscando só para você, ou ela faz isso para todo mundo? Aquela torta-mousse de chocolate branco estava gostosa de verdade, ou era só porque você estava pagando? Será que essa feijoada se entrega por amor a um funcionário da cozinha depois que você paga a conta e vai embora? Você jamais saberá.
A vida de quem tem, digamos assim, “tendência” para gostar de comida é assim: uma sucessão de pequenos “affairs” que duram segundos, minutos, no máximo algumas horas -- no caso de churrascos prolongados.
Alguns desses relacionamentos são anônimos (você nem sabe o nome do que está comendo) ou clandestinos (ninguém pode ver que você está traindo seu queijo branco de casa com um catupiry do trabalho).
Para conquistar mulheres, homens compram carros possantes e investem em jóias caras. Para conquistar homens, mulheres compram cirurgiões e alugam personal trainers. Felizmente, conquistar comida é muito mais simples: basta arranjar uma geladeira e um telefone.
A geladeira é a matriz. A companheira de todas as horas. É ela quem guarda todas as suas comidinhas papai-mamãe. Nunca é lá muito excitante, mas pelo menos ela nunca deixa você só na vontade.
Já o telefone é a aventura sempre à mão. Um ramal do mau caminho instalado na sua mesinha de cabeceira. O telefone é o gigolô que toma as providências para que a comida que você quer bata na sua porta dos fundos, a qualquer hora do dia ou da noite. É a sua ligação direta com o submundo das pizzas, os antros dos milk-shakes e o bas-fond do chop-suey. Perversão, teu nome é “delivery”.
Quando a pessoa sexualmente atraída por comida vai ao restaurante, é como se fosse para o motel. Tudo num restaurante é puro fetiche. A toalha. O guardanapo. Os copos de tantos tamanhos diferentes. A faquinha da manteiga. Ah, a faquinha da manteiga.
Então vêm os pratos, na exata ordem que você pediu. Úmidos. Molhadinhos. Lambuzados com cremes. Guarnecidos com purês. E acompanhados por pão. Para um amante de comida, não pode haver nada mais erótico do que massagear o prato com nacos de pão, absorvendo todos os fluidos que por acaso restem ao final do embate com a comida.
Mas em termos de intensidade de prazer, nada se compara ao buffet. O buffet é uma espécie de orgia na vida do indivíduo sexualmente atraído por comida. Ele mistura tudo, volta várias vezes à mesa e come tudo aquilo na frente de todo mundo. Depois ainda é capaz de continuar no salão, só para ficar assistindo aos outros se servirem.
De toda maneira, é errôneo pensar que todas as pessoas que sentem prazer com comida sejam compulsivas ou depravadas. De jeito nenhum. Existe quem busque um relacionamento duradouro com a comida amada.
Essas pessoas paqueram seus alimentos em lugares sadios, como a seção da feira no supermercado. Elas só vão para a cozinha com os alimentos quando sabem que terão o tempo suficiente para todas as preparações preliminares.
E quando elas precisam colocar pimenta no seu relacionamento, é simples: elas pegam a pimenta e colocam. "
Ricardo Freire
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