Por causa de Helena fez-se uma guerra. Foi há muito tempo e sabemos como o tempo transforma em caldo uniforme as mais díspares impressões de viagem. Ao tempo brincávamos com baloiços, automóveis de corda, cavalinhos. Coisas que roubávamos aqui e ali sempre com as angústias recolhidas no quarto mais escuro da casa e deixando que apenas o vento fizesse rodopiar o cabelo sobre os ombros e sobre a realidade.
Nada mais queríamos que construir uma civilização, embora não fosse bem assim, porque ninguém se levanta manhã cedo com a intenção decidida: hoje vou construir uma civilização. Não que seja ridículo. É tão ridículo como acordar de manhã e pensar: hoje vou descobrir porque amo assim Helena.
Nem de propósito, hoje, enquanto fazia a barba, e reparem como as palavras são estranhas porque o que eu estou a dizer é que rapava a barba com uma lâmina - quase o contrário de fazê-la, pensei que era um dia bom para esclarecer de vez porque me apaixonei, e temos que o dizer, eternamente, por Helena. Porque não há pais, nem mães, nem professores, nem destino, nem deuses que nos impeçam de amar aquilo que um mecanismo interior qualquer decide que havemos de amar. Dizer que era no intervalo das aulas que eu amava Helena, enquanto brincávamos e ela na sua cautelosa essência de vencedora definitiva me levava, pela mão, pode dizer-se, para os lugares ocultos onde qualquer ingenuidade ou sapiência se afunda em perplexidade e surpresa.
Volto a Helena sempre que posso. Pego nos restos e nos rastos e reconstruo os momentos que puderam ser infinitos e que ficaram enquanto eu for.
E porquê? Porque eu sou, afinal de contas, o encobrimento directo dessa incerteza, por ter Helena e olhá-la da maneira única que eu próprio fui. E acabamos por amar os sinais que se inscrevem na nossa pele porque são eles que nos fazem discerníveis de tudo o mais. E há os momentos que ficaram sobrepostos à exemplar certeza da descoberta, aquele momento em que deixamos de ser o mesmo que éramos e julgávamos eterno.
Helena estava lá, baloiçando no momento certo. Ou eu e os meus sonhos. E quase tudo o que veio depois.
Ivo Cação
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