Eu vi um coxo corvo numa taberna de santos e uma caravela em relevo no mármore de um chafariz e disseram-me que era Lisboa. Acreditei. As ruas escusas cheiram a gato e a manjerico; as artérias, a coiro da Rússia e a sangue azul, um poucochinho corado. Oh! que horizontes, do Castelo! e que betesgas da Graça! Já lá vai Palmela com seus adarves no azul do Sul, e a Arrábida redonda e perdida no céu. Voici Sr Neves retroseiro ( on parle français a refugiados e o inefável Poço do Borratém ainda com um olho encarnado ao luzir da noite alfacinha. Lisboa está florida de bandeiras, frutificada de nêsperas , semeada de cláxones de táxi. Ó ver a lista!, eh pá!, tás tu!....-e lá lhe foram sete paus àquele, a quinze ´stões a bandeirada!... Se me vejo em Alcântara enterneço-me.
Os marinheiros comem tremoço saloio; as meninas da Promotora assomam de permanente às sacadas. Uma abada de glicínias - e é um palacete à Junqueira; um martelo -pilão - e é a massa compacta e gris do Porto de Lisboa. Chamo Cesário Verde, mas só vejo um retrato de adolescente numa sala fechada; ainda ouço a tesoura de podar guiando a videira diagalves. Mas já não há Liverpool na caligrafia dos escritórios do Cais do Sodré, nem encontro no Martinho da Arcada a luneta cristalizada de Álvaro de Campos , engenheiro. Da Ribeira Nova foram-se as naus e os galeões. Agora só Leontina lá bate sua tairoca de varina e manda-me dizer pela amiguinha feia se eu lhe compro um oleado para o fundo da sua canastra. Os pintores do meu país pintam o peixe e a flor no paninho adorado da Leontina e a ferradura e a cabeça de cavalo no peitoral da égua do aterro.
Se abro o batente ao bar da Rua Nova do Carvalho é tal qual a Cannabiére: merci, Marseille quai des Belges...Além disso bebemos ginger-beer como um qualquer inglês; capilé-copo-com água. E ginjinha. No coração de Lisboa há um frémito dourado e um centilitro de sangue mouro, de má fama (...)
Vitorino Nemésio,
Desenho de Bernardo Marques
Panorama, 1947
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