8 de agosto de 2010
Talvez fosse o sorriso
(imagem: lander.edu)
Teimava em sair da memória. Em arrumações ou antes de adormecer aparecia em grande plano de farripas loiras, quase brancas, a contrastar com uns expressivos olhos negros.
Tendo em cada ano escolar de conhecer novos rostos, diversas identidades, interrogamo-nos sobre o porquê de alguns perdurarem.
Miúdo franzino e de esgar trocista, ensarilhava qualquer ambiente tranquilo: um lagarto sorrateiramente posto em liberdade na sala, um sonoro arrastar de carteira sem explicação possível, uma tirada a despropósito. Doía chamar a avó castigada pela dureza da vida e a repetir discursos contundentes «não devia ter ficado contigo quando os teus pais desapareceram, só trazes arrelias».
Talvez tivessem sido as palavras duras da idosa a causa de tanto me lembrar deste miúdo endiabrado, talvez o facto de, um dia, ter ficado na sala após a aula ter terminado, tentando partilhar comigo os bolos comprados antes da escola ou provavelmente o sorriso a passar rapidamente da provocação à autenticidade.
Subitamente desaparecido da escola, fazia parte das preocupações pessoais.
Dez anos mais tarde, vinda de uma consulta médica com uma febre teimosa, uma camioneta de tijolos em desastrada mudança de direcção amolgou parte do meu carro. Saído do enorme veículo de carga e em vez de alguma frase irritada, sou surpreendida com um «já foi minha professora, lembra-se de mim?».
Reconheço de imediato o sorriso, só que saído de uma estatura já não franzina. Pede-me, com educação, que preenchamos no café próximo a declaração amigável. Enquanto tomamos a bica (que teima em pagar) fico a saber que vive em habitação condigna e, casado há três anos, ainda não pensou em ter filhos «há casa a pagar, tudo deve acontecer na altura própria».
Regresso a casa de carro amolgado e com uma alegria indescritível por um miúdo que conseguiu fintar uma vida injusta à qual parecia não poder escapar. Ainda ouvi, durante algum tempo, o comentário vindo dos mais próximos «amolgam-te o carro e ficas contente!».
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5 comentários:
Fiquei emocionada com a sua história. Lembrei-me de um miúdo da minha turma de estágio. Só não era louro, porque de resto... traquina, provocador, a viver com a avó analfabeta (nem o nome ela consegue rabiscar). Era o meu preferido, era o odiado pela minha orienatdora...
Penso muitas vezes nele e espero que um dia ele também em amolgue o carro e me faça uma surpresa como a que a Teresa teve.
Que história tão bonita.
Melhor, que realidade tão carinhosa e afectivamente descrita de uma relação professor-aluno. Gostava de ter tido a Teresa como professora, eu sempre fui um 'aluno um pouco rebelde'. Será que os há em termos absolutos ou somos todos crianças a vivermos realidades diferentes?
Muitas vezes a traquinice explica-se, Luísa, apesar de ouvir aos amigos psicólogos o «vocês têm a mania de 'psicologizar' tudo»... até à data são muitas vezes miúdos como o P que me entusiasmam mais, pois começo logo a sonhar acordada com mudanças graduais. Espero que venha a encontrar o seu aluno, desejando que, para tal, não seja necessário o carro amolgado:)
Não sei a resposta para a questão deixada pelo Miguel Gil, pois também fui uma aluna um pouco rebelde, mas de outra forma ,o meu contexto foi felizmente diverso e os tempos eram outros... Apesar de um pouco 'castigada' para a época uma professora de Moral a querer cortar-me o cabelo na sala 'dá muito nas vistas- dizia', outra a destacar-me publicamente por não progredir muito na Matemática e ter sido colega da minha mãe 'em casa de ferreiro, espeto de pau - repetia em frente à turma'. O que sei dizer é que dissabores como estes (e se envergonham na adolescência!) não conseguiram destruir em mim o gosto de estar na sala de aulas:)
Teresa, ainda bem que há ‘alunos rebeldes’ que não se deixam envergonhar por pseudo professores.
Um aluno rebelde pode vir a ser um bom professor. Bem-haja os professores que foram um pouco alunos rebeldes, para bem do ensino em Portugal.
Sim, os tempos forma diferentes mas temos algumas semelhanças nos nossos percursos e como os vemos. :)
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