25 de maio de 2010

Insigne

“Eu não serei, como verá, com os meus antecessores camonianos, mais do que eles têm feito por merecer, com as suas falsificações e escamoteações…
…Uma coisa é o que não se está em condições de fazer, e outra é o que não se faz porque na terra dos cegos quem tem um olho é rei. Toda a investigação é uma correcção sucessiva; mas, para corrigir-se assim, é preciso ter feito primeiro alguma coisa. E há, sim, desonestidade e leviandade. Tal e tanta, que os que sabem delas, pelas Itálias e Américas, mesmo sem saberem o que eu vou dizer, já me escrevem a pedir piedade…
…Porque não querem ter de optar entre o que eu diga de verdade, e as possibilidades de bolsas.”

Sobre o autor destas linhas, de 1964, escreveu Eduardo Lourenço:
“não é um autor fácil. É um autor, e um autor nunca é fácil”.

Valendo a pena aprofundar o que ambos escreveram…a quem se refere E. Lourenço?


Jorge de Sena.
Adivinhou "divagarde", e muito bem.

("Jorge de Sena / José Régio - Correspondência").

5 comentários:

divagarde disse...

Pelo jeito de dizer, pela referência camoniana, pela alusão à investigação, pelo toque quanto às Américas, por não ser fácil, por ser UM AUTOR, eu diria Jorge de Sena, que dedicou décadas ao estudo de Camões.

Ambas as citações merecem, sim, um comentário mais alongado, mas esse terá de ficar para depois, que agora foi mesmo numa fugidinha :)

José Quintela Soares disse...

E diz muito bem, "divagarde", porque é ele mesmo.

Fico a aguardar o comentário.
Obrigado.

teresa maremar disse...

:) o comentário…


O excerto de Jorge de Sena faz-me evocar Bomarzo, um livro delicioso de Manuel Mujica Lainez. Neste, o protagonista renascentista, Pier Francesco Orsini, Vicino para os poucos amigos - dotado, pela imaginação de Lainez, do dom da imortalidade -, confronta-se, no Museu Etrusco Gregoriano, com o seu elmo, e posteriormente com uma tela sua, atribuídos a outrem, apenas porque um e outra foram encontrados, séculos depois, em residências de famílias que não a sua. Nem ele percebe como aí foram parar, mas sabe que aquele é o elmo oferecido, a si, pela avó, e que o rosto retratado é o seu. Lainez faz História, pois toda a Renascença ali desfila, mas questiona, deste modo, a veracidade da mesma.

E trago Bomarzo – na senda da desonestidade e leviandade na investigação que Sena refere – porque, se ao romancista é permitido o acrescento, o adorno, assim como ao poeta é consentido deambular ao sabor da imaginação, já o historiador precisa ser fiel às fontes, isento, objectivo.
No que respeita o historiador, o cronista, as fontes escritas antigas resultam, frequentemente, de testemunhos de oralidade, logo, suspeitas e falseadas [“Quem conta um conto…”]. E, por outro lado, estar ao serviço de um senhor ou regime obrigava [obriga?] ao louvor e enaltecimento dos feitos [ou feitios :)] destes.
[Quanto nos induzirão em erro as legendas que acompanham as peças nos museus? :)))]
Assim, a História não só é omissa, como, frequentemente, não é fidedigna, como Sena pretende com “Toda a investigação é uma correcção sucessiva”.

Um autor, neste caso no sentido de um estudioso de outro autor [porque é enquanto estudioso de Camões que Jorge de Sena aqui importa], tem uma responsabilidade acrescida.
Primeiro, há que esventrar a obra. Depois, há que ter em conta o trabalho de outros estudiosos - com a interrogação e suspeição presentes. Depois, ainda, há que avaliar do contexto histórico e social e da produção dos autores então contemporâneos.
E, a todo este trabalho imparcial, acrescentar a sua visão - porventura pontualmente também em algo subjectiva, mas sem omitir quanto essas conclusões são de teor pessoal. Só esses são os GRANDES que nunca morrem, os que não escamoteiam nem falsificam.
O estudioso/investigador tem, ainda, o dever de deixar portas abertas, para que outros se fascinem e continuem os seus labor e legado, pois o contributo maior do investigador - para lá da alegria pessoal e do prazer do leitor - é garantir uma continuidade no porvir.
Em resumo, um fiel de balança e um sedutor :)

Quanto ao apontamento de Eduardo Lourenço, há um fácil de acessível, inteligível, e um fácil de dócil.

Um autor nunca é fácil… Tenho para mim que Eduardo Lourenço não se refere a um Jorge de Sena hermético, de difícil compreensão, acessível apenas a uma elite intelectual, mas pretende dizer de um Jorge de Sena que não optou pela cedência em nome de título, homenagem ou glória inglória, reconhecendo-lhe a denúncia, a polémica, a lealdade a si mesmo.
Não ser um autor fácil, digo eu, é aquele que escolhe o rigor na sua investigação, no seu ajuizamento, na sua crítica, nas suas opiniões, ainda que discordante do vigente.
O percurso de Jorge de Sena diz do preço de ser difícil.

A terminar o divagar que vai longo, não posso deixar de referir a opção pela entidade “AUTOR”. Eduardo Lourenço escreveu “autor” referindo-se a Jorge de Sena. Não escritor - o que disserta, redige -, sujeito de escrita, mas autor, a entidade que grafa o nome, abaliza a sua escrita. Assume. E esse “não é um autor fácil. É um autor, e um autor nunca é fácil”, que parece um sussurro pueril, é a mostra de toda a admiração que lhe dedica.

José Quintela Soares disse...

Depois deste excelente comentário, resta-me navegar por outras águas, talvez confluentes.
Jorge de Sena.
Se há mais casos de alheamento ao valor, este representa bem a ferocidade de um regime, indiferente às capacidades e talento de quem quer que fosse, desde que não alinhasse no pensamento oficial.
“Quem não é por mim, é contra mim”, defendia Salazar.
Esqueceu-se de acrescentar “portanto é para esmagar”, pelo menos como conceito teórico, já que na prática bem o tentou, e por vezes, conseguiu.
Jorge de Sena foi um intelectual brilhante e fascinante, alguém que discernia com uma facilidade tremenda, ajuizava sempre de forma isenta, e obviamente criticava com aspereza brutal tudo aquilo que o rodeava e com o qual não pactuava, de modo algum.
Crítico feroz, não lhe restou outro caminho que a saída para o estrangeiro, primeiro para os Estados Unidos, depois para o Brasil, onde leccionou em prestigiadas Universidades e foi reconhecido. Camoniano profundo, a ele devemos alguns dos melhores estudos nessa área, para além de uma Obra literária diversificada, ainda hoje mal conhecida no nosso meio, e portanto esquecida.
E quando se esperaria o regresso definitivo depois de 74, para surpresa de muitos, principalmente dos que mal o conheciam… continuou no Brasil, vindo esporadicamente a Portugal participar em colóquios e conferências.
Diria que Jorge de Sena nunca perdoou Portugal.
Mesmo agora, que os seus restos mortais repousam em Lisboa, duvido que fosse sua vontade assim ser. Aliás, foram bem pouco sonoras, para não dizer quase mudas, as manifestações que deveriam ter rodeado tal acto.
Um outro aspecto que julgo importante referir, prende-se com a frase de Eduardo Lourenço.
Num tempo em que abundam “escritores” portugueses, será bom pensar em quantos “autores” temos. Porque, como diz e bem “divagarde”, eles não se confundem.
Enquanto qualquer apresentador de televisão resolve escrever umas páginas, e até tem dificuldade em escolher o editor, tantos eles são, alguns “autores” não sentem essa facilidade de publicação.
Talvez porque o cor-de-rosa seja mais atractivo, nunca houve tanto escritor de sucesso, tanta futilidade coroada de êxito, tantos títulos em lançamento.
São “fáceis”.
Não são autores.

divagarde disse...

É, o êxito fácil prolifera. Eu diria, ainda que de jeito algo excessivo pois que há excepções que prometem, que a arte contemporânea grosso-modo está decadente.