25 de março de 2010

TISANAS






















Tisana.
Sempre sentiu um encanto por esta palavra maravilhosa.
Tisana era como a avó paterna chamava ao chá.
“Lúcia! traz a tisana”
A Lúcia, de avental de um branco imaculado, trazia um bule de chá.
Nunca lhe deu para perguntar à avó o que era tisana.
Para que havia de perguntar o que era tisana, para quê complicar o que era simples e tão bonito. Lúcia também o era.
Beber chá com a avó, nas tardes de sábado da Rua Senhora do Monte” e torradas com muita manteiga.
Terá que dizer que nunca encontrou facilidades na escrita de Ana Hatherly. Não sabe se é bom, se é mau, mas gosta de dificuldades de escrita. Pode abandonar os livros no princípio, a meio, mas volta sempre a eles.
Estas são as Tisanas de Ana Hatherly.
Na conta capa lê-se:
“As “Tisanas” são uma meditação poética sobre a escrita como pintura e filtro da vida. No seu conjunto formam uma espécie de “cidade-estado” construída pela escrita criadora, que é “abolição, oblíqua, delírio provocado e lição de tentativa”. O mundo das “Tisanas” é um mapa emotivo de uma conjuntura cultural em que os agentes do sentido têm por árbitro o espírito.”Seria indelicadeza falar das Tisanas de Ana Hatherly, e não partilhar algumas com os viajantes dos “Dias Que Voam”
A voz, ao longe, da avó materna:
“Lúcia! traz a tisana.”

17
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

46
.ontem eu e a minha irmã resolvemos ir hoje ao cinema quando chegou o momento de nos preparamos para sair verificámos que o verdadeiro momento já tinha passado.

126
O autor e o leitor: estamos no limiar do prazer. Um de cada lado como anfitriões esperando tensos. Vivemos a problemática do segredo – se for divulgado deixa de existir se não for torna-se um horrível tormento. Alguns mestres dizem que o próprio do prazer é não poder ser dito.

144
O passado em si é muito forte dizem-me sente-se em si intacta a criança para compreendê-la é preciso Freud Lacan. Penso na minha infância. Quando eu era criança do que eu mais gostava era cerejas.

317
Estou no meu quarto. Deitada na minha cama. A luz está acesa. Oiço música. Penso em ti mas não é em ti. É um tu abstracto porque a tua ausência é uma lesão incurável que se imaterializa com o tempo. Por fim adormeço. Quando acordo de manhã sinto-me feliz por ter conseguido dormir.

319
O mar é a minha mais antiga obsessão. Vivi sempre perto do mar e dum mar que encheu a minha infância de alterosas vagas povoando de terror os meus sonhos. Mas longe do mar ainda hoje sinto um inexplicável exílio.
Penso nisto lendo um livro de A.S. De repente, na página 289, está escrito: envelhecer é multiplicar-se interiormente.


Ana Hatherly, "351 Tisanas", Quimera Editores, Lisboa 1997

2 comentários:

teresa disse...

A mais jovem colega na faculdade, quando decidiu - após as belas artes - seguir um curso de letras. Penso que a escrita de Hatherly reflecte a sua formação inicial, o que é ainda mais evidente na poesia concreta de sua autoria.
Numa tarde e entre aulas, sentadas sob as árvores que ladeavam o pavilhão novo, contei-lhe sobre um professor que não aceitou dar aula no exterior num belo dia de sol. Dizia ele 'vocês ficam a olhar para a relva, para o céu e não prestam atenção à aula'. Ficou tão 'revoltada' quanto eu ante o relato. Mais tarde, surgiu o seu belíssimo texto 'o mestre' e - situaçáo possível ou não - fiquei sempre a pensar se teria sido influenciada pela nossa conversa junto ao pavilhão de estudos anglo-americanos (assim designado na época). Foi uma colega que se tornou inesquecível.

almariada disse...

obrigada, nada como uma boa tisana num domingo à tarde! ;)