19 de setembro de 2006

às vezes, muito raramente, dá vontade de voltar a ser católica apostólica romana

Eu não sou muita atenta ao que padres e frades dizem. Já tive a minha dose.
Mas domingo encantei-me com o Frei Bento Domingos e achei vergonhosa a forma como lhe foi cortada a palavra. Foi exactamente isso que o post do carlos me fez recordar e digerir de outra forma.É o serviço público do carlos como diz o Azinho. Faz-nos remoer as questões.
E a deambular pelo primo google, deslizei num escrito do dito Frei. Tem uns anos, mas gostei tanto de o ler.
Fez-me lembrar os padres novos do antes do 25 de Abril. Os que pensavam e exerciam a sua inteligência a par da fé. É um texto com seis anos, mas de actualidade tão evidente...

"Que fizeste do teu Deus?


Que fizeste do teu Deus? Que fizeste do teu irmão?
Artigo de Frei Bento Domingues, publicado no jornal Correio da Manhã de 2001/09/28

1. Nenhum povo tem o monopólio do sofrimento humano. As tragédias étnicas não são mensuráveis. Como diz A. Safieh: “Se eu fosse um judeu ou um cigano, a barbárie nazi seria o acontecimento mais atroz da história. Se fosse um negro africano, esse acontecimento seria a escravatura e o “apartheid”. Se fosse um americano nativo, seria a descoberta do Novo Mundo pelos exploradores e colonos europeus. Se eu fosse um arménio, seria o massacre praticado pelos otomanos. Se eu fosse um palestiniano, seria a Nqba/Catástrofe de 1848.”
Não existem filhos de um Deus maior e filhos de um Deus menor: Gosto muito, por isso, de uma pergunta divina, referida na Bíblia, nessa biblioteca onde nem tudo é recomendável: - “Que fizeste (ou vais fazer) ao teu irmão?”
Génesis 4:1/16
É uma passagem admirável. Nela, irmão não se restringe ao membro da família, da etnia ou da nação. É uma forma como Deus pede contas de um ser humano a outro ser humano.
Invocar Deus para abençoar um povo contra outro ou contra outra pessoa é uma blasfémia. Invocá-lo para exercer vingança sobre uma pessoa, um povo ou uma cultura é sacralizar o crime. Como diz Tomás de Aquino, Deus não pode ser directamente ofendido. É atingido quando agimos contra o bem das pessoas.

2. Simone Weil, uma filósofa judia, sugere que os Evangelhos, antes de serem uma teoria sobre Deus, são uma teoria sobre o homem. É o que também sustenta o antropólogo René Girad (Cf. “Je vois Satan tomber comme l’éclair”, Paris, Grasset, 1999). O Evangelho de
Mateus 25:1/46 confirma essa tese. Antes de qualquer referência religiosa, é a atitude que se tem em relação a qualquer vítima – e não em relação às vítimas seleccionadas por critérios políticos, étnicos ou religiosos – que nos afasta ou aproxima de Deus e do seu reino.
Para René Girad, a preocupação com as vítimas – mesmo se, por vezes, não passa de uma grande comédia – é uma herança cristã. Nem a China dos mandarins, nem o Japão dos samurais, nem as Índias, nem as sociedades pré-colombianas, nem a Grécia, nem a Roma da República ou do Império, se importavam com as vítimas que, sem conta, sacrificavam aos deuses, à honra da pátria, à ambição dos conquistadores, pequenos ou grandes.
Nietzsche, no seu agudo anticristianismo, captou como poucos o contributo cristão para o reconhecimento da dignidade absoluta de cada ser humano: “No cristianismo, o indivíduo foi tomado tão sério, elevado a um ponto tão absoluto, que não era possível continuar a sacrificá-lo. Mas a espécie não sobrevive senão graças aos sacrifícios humanos... A verdadeira filantropia exige o sacrifício para o bem da espécie: é dura, obriga a se dominar a si mesma, porque tem necessidade do sacrifício humano. E esta pseudo-humanidade chamada cristianismo quer precisamente impor que ninguém seja sacrificado...”

3. Se não há várias espécies humanas, é tempo de nos ocuparmos, com inteligência, da humanidade de todos. A ONU, nas suas diversas instâncias, devia existir para garantir um mínimo de paz, liberdade, de justiça e de solidariedade no mundo. Se não funciona ou funciona mal, que seja reformada e prestigiada – e não esvaziada – para poder garantir uma nova ordem mundial baseada no direito e na procura da justiça para todos. Sem isso, viveremos segundo os interesses e o egoísmo dos mais poderosos e a ameaça terrorista dos mais frustrados.
Álvaro Vasconcelos, director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, escreveu um texto de ética política sobre “O mundo sem ordem” (Cf. Público, 19/9) que merece tornar-se uma peça de referência num momento em que a propaganda e demagogia tendem a substituir o discernimento.
Diz-se que a operação “Justiça Infinita” – uma designação que soa demasiado aos estúpidos “slogans” dos taliban – corre o perigo de continuar uma série de triste memória: Coreia, Vietname, Irão, Iraque, Somália, Líbano etc.
O que está provado é que a hegemonia militar, económica e cultural norte-americana – com grandes bases militares em 62 países – não basta para garantir a paz. Passadas as emoções do sobressalto actual perante o horror, não vai ser possível continuar a reunir o mundo em torno da bandeira do EUA e da sua política imperial.
O combate ao terrorismo disseminado será compatível com a multiplicação dos focos de guerra, de violência, de anarquia e de catástrofes humanitárias que a “Justiça Infinita” parece anunciar? E quem se vai lembrar de Angola, há mais de 25 anos entregue a todas as formas de guerra e de terrorismo, com diamantes e petróleo para pagar o renovamento do armamento e da corrupção?
O eurodeputado José Ribeiro e Castro teve o mérito de desencadear o processo da candidatura do bispo Zacarias Camuenho – um incansável lutador pela paz – ao prémio Sakharov 2001 do Parlamento Europeu. É fundamental apoiar esta voz de “Angola pela positiva”.
Tentarei mostrar o que isto significa, o que implica e o que exige. Dentro e fora de Angola.

Frei Bento Domingues"

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