9 de julho de 2006

Miss Daisy em Oeiras

A história é conhecida. Entre 1948 e 1972 acompanhamos a relação entre Daisy Werthan, viúva judia, e Hoke Coburn, o seu motorista negro, contratado por Boolie Werthan, filho de Daisy, e contra a vontade desta que, aos 72 anos considera ainda ser capaz de conduzir, apesar de ter espatifado um carro novo com uma marcha-atrás que não compreendeu. Inicialmente rejeitado, Hoke tornar-se-á no amigo de uma vida a que assistimos ao longo de apontamentos representativos desses 25 anos. A peça original, de Alfred Uhry, ganhou um Pulitzer em 1988; o filme, de Bruce Beresford, ganhou quatro Óscares em 1990 – melhor filme, melhor actriz, melhor caracterização e melhor argumento adaptado.

É esta peça que está em cena no Auditório Municipal Eunice Muñoz, em Oeiras, com a própria no papel de Miss Daisy. Se no filme existem diversos personagens, a peça alude apenas à maioria, surgindo apenas três actores em cena: Boolie Werthan, o filho, representado aqui por Guilherme Filipe; Hoke Coburn, pelo actor brasileiro Thiago Justino; e Daisy Werthan, papel desempenhado por Eunice Muñoz.

O desafio da peça, cujo texto se caracteriza por uma notável contenção e por uma capacidade evocativa rara, está na evolução das três personagens, com destaque para Hoke e Daisy. As expectativas do público não saem defraudadas, muito pelo contrário. O filho Boolie transforma-se de um jovem e voluntarioso empresário numa das mais respeitadas figuras de Atlanta, tendências republicanas e tudo; Hoke evolui do negro marcado pelos traços violentos da segregação para um homem em paz consigo e com a sua vida; Daisy, uma mulher lutadora, caminha para a senescência, guardando dentro de si a chispa que a mantém de pé até aos 97 anos de idade em que a peça termina. Cenograficamente encontrou-se uma solução razoável para as cenas que se passam dentro do automóvel – passados os primeiros risos desencadeados pelo sistema encontrado para as representar, entramos na ilusão e deixamo-nos, literalmente, conduzir.

Resta falar dos actores.

Guilherme Filipe é muito correcto naquele que é um papel de suporte, aquele tipo de papel ingrato e essencial na tarimba de qualquer actor.

Thiago Justino é sensacional. O sotaque brasileiro, em contraponto com o português de Portugal, cria um sucedâneo magnífico do dialecto negro da Geórgia a contrastar com o sotaque sulista branco. A sua linguagem corporal é magnífica e os olhos reflectem os seus sentimentos para a plateia de modo cristalino.

Não sou competente para falar sobre Eunice Muñoz. Por outro lado, conheço bem o filme. Direi assim que somos arrebatados por esta figura, que evolui, de modo quase mágico, de uma mulher cheia de força até ao despojo físico e mental em que se torna. Tal como os colegas, Muñoz envelhece visivelmente sob todos os aspectos: a força física, o verbo que progressivamente se torna hesitante, depois entaramelado, até ser apenas um murmuro quase inaudível, a expressão que se vai fechando… não é possível descrever e fazer justiça ao que presenciamos. Se existem representações extraordinárias esta será, sem dúvida, uma delas.

Nestes 25 anos passam-nos pelos olhos momentos fundamentais da história dos Estados Unidos. A linha condutora da história é a luta pela dignidade humana, a dignidade humana como mote de uma peça notável, representada de modo comovente. É isto que está à nossa disposição em Oeiras, por dez euros o bilhete.