Pensei que nunca mais veria aquele rapazola de cara reguila, ar límpido de criança estampado na face mas de interior curtido e precocemente moldado a uma vida adulta em demasia à qual tão cedo foi lançado. Velosa tinha o nome de guerra de Tiquinho; o porquê da alcunha, como a maioria das alcunhas, morrerá no segredo e esquecimento da irmandade dos meninos de rua do Funchal, que assim o baptizou. Ao fim de muitas peripécias, rumou ao Continente da República, com destino à Casa Pia, salvo erro.
Talvez por nunca o ter tratado como se de um criminoso adulto, não que nunca lhe tenha dado uns açoitezitos nas primeiras intervenções que com ele tive, Tiquinho que conhecia a minha firmeza perante as suas acções, nutria por mim um certo respeito, diria mesmo consideração, por uma vez o ter livrado de um verdadeiro linchamento popular, depois de ter sido surpreendido a aliviar umas caixas de chocolates de uma carrinha de entregas. O meu acto, não direi que foi heróico mas a coisa esteve tremida para o meu lado ao tentar fazer entender que era um menor e de nada adiantaria uma acção daquelas. Perante de uma série de varapaus e até algumas típicas foicinhas de cortar cachos de bananas, os indignados ilhéus, juntaram o facto de estar a tirar-lhes o prazer de umas bordoadas no pequeno à minha condição de “cubano”, imediatamente denunciada na minha voz e por alguns dos justiceiros mais à retaguarda. Até o Tiquinho, que poderia ter fugido no meio da confusão, tal e qual um solidário camarada de armas, manteve-se firme, ali a meu lado e preparou-se para, juntamente com os agentes da lei, vender cara a sua liberdade. Encostou-se a mim, cerrou os punhos de forma ameaçadora e ficou ali, com ar marcial, como que esperando a minha ordem para carregar sobre os seus carrascos. Não sei se foi a surpresa de me ter mantido firme e ter avisado, que ao mais mínimo gesto atentatório contra a minha integridade física, de algum dos meus rapazes e sobretudo do jovem já sob custódia policial, usaria de meios coercivos para com avançasse ou da atitude do “mitrinha” ali a meu lado, certo é que a populaça lá se demoveu de fazer a sua justiça de rua e retirou, limitando as suas agressões a meras palavras insultuosas e promessas de adiamento da “questão” para outro dia. O Tiquinho, recolheu, claro que temporariamente, à sua “prisão”.
Estava escuro como breu. O café, encontrava-se parcialmente escondido pela estrutura de um viaduto recentemente construído o qual tapava a entrada de luz da rua para o interior. Que descuidados que os tipos eram! Tinham deixado a porta escancarada, melhor ainda, as duas portadas. Seguidos os procedimentos habituais em circunstâncias deste tipo, existindo fortes indícios de se encontrar ainda alguém no interior, progredi, junto com a rapaziada, embrenhando-nos na escuridão do café. Do fundo deste, por baixo de uma porta, via-se um feixe de luz entrecortado por sombras de alguém que se encontrava no interior. Pé ante pé, fui-me aproximando, evitando quaisquer barulhos que denunciassem a nossa presença. Eis qual não é o meu espanto quando, a meio da progressão, dou por mim travado por dois tubos de metal sobrepostos de uma caçadeira, contra os quais tinha avançado, entre a cegueira da noite. Gelei de imediato; não teria sequer tempo de ouvir o percutor caso o tipo do outro extremo decidisse mandar-me tratar da contabilidade com o Criador. Num acto misto de medo e desespero, soltei um sibilino e longamente suspirado “Foda-se!”,. Acho que não me urinei porque o caudal de líquidos do meu corpo acorreu em massa para os poros que jorraram mais suor que água o Niagara em pleno degelo. Numa reacção quase instintiva, perante a falta de decisão do meu adversário em fazer-me uns furos extras no peito, rodei ligeiramente para o lado ao mesmo tempo que agarrei os canos da arma, puxando-a para o lado e na sequência lancei-me sobre o vulto que teimava em não a largar. Rolámos ambos pelo solo, fazendo desabar algumas pirâmides de cadeiras, postas sobre as mesas do café. Foi então que gritei – Arma – enquanto alguém accionava o interruptor da luz do estabelecimento. Por breves momentos fiquei sem fala. Ali, debaixo de mim, estava o Tiquinho com ar de culpa assumida misturado com esgares de clemência. O jovem rebelde, em tom de desafio, olhou-me e aventou:
- Deixa-te de merdas pá!... – aventei eu, ainda mal refeito do choque – Tirem-me este “chavelha” daqui, antes que me passe uma ideia má pela cabeça.
- Tinha de ser...
- Ainda te ris seu sacana!?
- Acha que lhe ia atirar na cara? Nem sei disparar…
- Maluco para isso és tu!
- Não, ao senhor nunca, vi logo quando entrou que era você!
- Não sabias que se te tivesse visto antes poderias ter levado um tiro?
- Pois… se tivesse que ser. Estamos sujeitos, é a vida. Mas a si nunca atiraria.
Acredito, aliás, mentiria se dissesse acreditar no contrário, que não foi pela falta de conhecimento sobre o manuseamento da arma que o Tiquinho não disparou. Antes acredito e vou continuar a acreditar que aquele miúdo, precocemente adormecido dos seus sonhos de criança, despertou naquele momento, mesmo que momentaneamente e mostrou que o seu lado bom estava dentro de si, escondido, mas ainda dentro do seu jovem ser, à espera de se manifestar a quem entendesse ser merecedor de um gesto de gratidão. Porque chego a esta conclusão? Ele tirou-me as dúvidas:
Anos mais tarde, enquanto estacionava o carro na zona do Hospital de Santa Maria, ao sair do veículo, alguém, vestido com a farda verde da EMEL, dirigiu-se-me nos seguintes termos:
- Se for por pouco tempo... vá lá que não precisa de tirar o "ticket". Por mim, você nem pagava nada.
Fiquei feliz; reconheci de imediato a sua voz, ainda de criança, com aquele inconfundível sotaque de Câmara de Lobos. Grande Tiquinho, parabéns pá!
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