Acho que cada actividade ou profissão terá os seus próprios rituais de iniciação. Penso que terá a ver com tradições antigas, em que o simbolismo e o secretismo de um acto ritual, tornava os membros de um grupo mais próximos uns dos outros.
Não conheço os rituais de outras actividades mas, na Medicina e, encarando o Juramento de Hipócrates como como a formalização do dever de obediência a um conjunto de princípios éticos, julgo que o nosso verdadeiro ritual iniciático é o chamado "exame de saída da especialidade"
Este exame, que vem na tradição dos antigos exames à ordem, é um mero acto anacrónico e simbólico mas que marca (se marca...) o exacto momento em que um interno passa a especialista.
E anacrónico, porquê?
Porque a formação continuada de um médico especialista em Portugal é, actualmente, feita de forma idónea e bem padronizada:
- O período de formação de um interno da especialidade varia entre quatro anos ( por exemplo para Medicina Geral e Familiar, Radiologia e Patologia Clínica), cinco (para a maioria das especialidades médicas, como Gastrenterologia e Cardiologia) e seis anos (para a maioria das especialidades cirúrgicas, como Ortopedia ou Urologia).
- Cada especialidade tem programas de formação bem definidos, com objectivos relativamente claros de aprendizagem por ano, com a exigência de estágios parcelares em áreas específicas e, para algumas especialidades, com a exigência de determinado número de técnicas de diagnóstico ou terapêuticas.
- Os serviços onde essa formação é ministrada são considerados idóneos pelo Ministério da Saúde, sob proposta do Colégio da Especialidade. Essa idoneidade é avaliada anualmente - de modo mais ou menos rigoroso (e este é um dos pontos fracos do sistema: a avaliação raramente é presencial e baseia-se num questionário que pode ser mais ou menos aldrabado) e assenta em vários factores: número de especialistas existentes no Serviço, número de doentes observados e técnicas executadas, e na existência de outros requesitos como biblioteca, arquivo actualizado, sessões clínicas e actividade científica.
- Para cada interno é nomeado um tutor ou orientador de formação, que programa e supervisiona a formação do interno, dentro do estabelecido no programa do internato, mas tendo em atenção as necessidades do Serviço. Aqui reside a segunda lacuna do sistema, pois ao tutores nada mais é exigido do que ser especialista: deveria haver formação específica para orientadores de formação.
- Durante o longo período do internato, durante o qual o interno exerge uma prática clínica diária e tutelada, é avaliado constantemente pelo seu tutor e restantes membros do Serviço. Anualmente, ou em cada estágio parcelar, existe uma avaliação que tem várias opções: apresentação de um trabalho, apresentação e discussão de um relatório de estágio, prova prática ou discussão teórica sobre os temas do estágio, ou ainda qualquer combinação das três anteriores. A cada estágio ou ano corresponde uma nota que, através de uma fórmula bastante complicada, vai originar a nota final da avaliação contínua.
Chegados aqui, poder-se-ia dizer que bastava: estava formado o especialista. Para quê um exame final? Como pode uma única prova validar ou invalidar a formação de 4, 5 ou 6 anos? Por isso o considero anacrónico.
Há que o defenda como uma forma de aferição externa da formação mas, em minha opinião, essa aferição deveria ser feitas em avaliações anuais rigorosas dos Serviços. Por outro lado, e se em bom dizer, não existem muitos casos de internos que "chumbem"(que tenham nota negativa no final do internato), muitos são, mais ou menos directa ou indirectamente, convencidos a desistir nos primeiros anos do internato. E também "nunca" é no exame que chumbam.
Por isso, só pode ser um acto simbólico!
Em data aprazada, reune-se o júri. Este é composto pelo director do Serviço, pelo orientador de formação e por três elementos externos ao Serviço, propostos pelo Colégio da Especialidade. O Exame pode decorrer, tipo maratona, num dia, ou estender-se calmamente por dois dias.
O interno, que durante anos foi, de forma mais ou menos diligente, tornando-se um especialista, começa a estudar, qual acéfalo, nos meses que antecedem o exame e tem a tendência doentia de decorar pormenores irrelevantes: desde a definição do Síndrome que-não-existe, até aos 2% dos pintelhos que nascem para o lado contrário.
O exame é então composto por três partes:
- Na Prova Curricular cada elemento do júri comenta, durante 15 a 20 minutos, o currículo do candidato (designação oficial durante o exame). Começa-se, habitualmente, por elogiar os diferentes aspectos deste, apresentação, opções tomadas, casuística, trabalhos, etc... Só depois vêem os mas… e os mas é como o ABS dizia: bater no candidato! E aí, vale tudo: erros ortogáficos, tabelas menos claras, indicações menos objectivas, patologias menos esclarecidas, trabalhos mais rafeiros, etc… A seguir a cada elemento do júri, o candidato tem o mesmo tempo para argumentar. Aí, vale a lábia do artista e deve-se sempre começar por algo deste tipo: "Obrigado, desde já agradeço os elogios e as pertinentes observações feitas pelo doutor…"
- Prova Prática: o candidato tem 60 minutos para avaliar um doente sorteado entre três. Logo após, tem 90 minutos para escrever a história clínica, antecedentes pessoais e familiares, exame objectivo, resumo clínico, hipóteses de diagnóstico com discussão e requisitar os exames complementares (vulgo Rx, análies e outros) com justificação. São-lhe fornecidos os tais exames disponíveis e tem, então, mais 60 minutos para escrever a interpretação dos exames complementares, diagnóstico final com justificação, terapêutica proposta e prosnóstico.
Após esta estopada, tem que ler tudo, o mais fluentemente possível, em frente do júri que vai fazendo breves anotações. Após acabar volta mais do mesmo: cada elemento tem 15 minutos para comentar o relatório. Elogiar (um bocadinho...), criticar as minudências (não referiu os pavilhões auriculares correctamente… Então, esqueceu-se dos genitais?… Não pediu o doseamento dos anticorpos anti-LKM tipo II…) e concordar, ou não, com o diagnóstico e terapêuticas propostas. Como antes, o pobre candidato tem o mesmo tempo para argumentar e se defender como puder.
- Finalmente, a Prova Teórica: para não variar muito, os elementos do júri têm os tais 15 a 20 minutos, cada um, para fazer qualquer pergunta que lhe der na bolha: Ora então… aaahh… diga-me lá o que sabe sobre … a Colite Isquémica… Depois fale-me do tratamento da Acalásia… e… e... por fim, explique-me os mecanismos de actuação dos IBP’s! E o, já arrasado, candidato lá responde como melhor souber. Como já passei pelos dois lados, sei que o candidato sabe muito mais, mas de longe, que qualquer membro do júri. Mas também sei que qualquer desses membros, como uma leitura prévia, pode enquadrar muito melhor um determinado assunto e "apertar" a vítima.
E está acabado o nosso ritual de iniciação. De uma forma geral, os membros caseiros do júri, se a prova está a correr bem, limitam-se a breves comentários. Se vai correndo mal, lá saem algumas perguntas salvadoras…
E, quase sempre fica tudo na mesma. Tirando um ou outro raro espalhanço, se a prova corre bem fica com mais 1 décima que avaliação contínua, se corre menos bem fica com menos 1 décima. E, cada vez mais, com limites apertadíssimos: as notas variam entre 19.0 e 19.9. Um 18.5 é como se fosse uma desonra, uma negativa. Enfim…
Do exame que fiz na semana passada, a imagem que guardei da interna, que já conhecia e que é excelente, foi a de uma permanente expressão facial impossível de descrever: como que um misto de exaustão, angústia e extrema tensão. Como se fosse aquele o dia da vida dela em que tudo se decidia. E não era… Já estava tudo decidido!
PP: Fogo, este é o meu post mais longo… Conseguiram aqui chegar? Perceberam? Gostaram?
PPP: E agora, o mais importante: o Benfica ganhou... a Taça é nossa!
3 comentários:
Estava eu a navegar num tempinho de pausa no estudo, quando deparo com este artigo, com uma distância temporal de 5 anos, mas que ainda se encaixa perfeitamente na situação que neste momento estou a viver, que é de ter a minha"prova de fogo"brevemente.Licenciei-me tarde por circunstâncias da vida,e optei pala Medicina Geral e Familiar pela minha própria inclinação para o contacto humano.O tarde, é que tenho 49 anos,embora já seja médico há 10 anos, mas achei por bem tirar uma especialidade.Não tive muita sorte com as orientadoras(duas),pois como estava numa área geográfica extremamente carenciada, a minha actividade assistencial era e é,exaustiva e a formativa,nula.Neste momento estou a trabalhar de uma forma completamente autónoma num CS carenciado, pois mal acabei o internato fui lá colocado pela ARS Norte, onde estou desde Junho de 2009, já que "saltei o 1ºExame", o que posso agradecer às minhas Exmas Orientadoras.Fiz o CV como mandam as regras, enviei-o para a minha OF para analisar, e para possíveis correcções - Recebia-as, na noite anterior à data limite de entrega - o que como deve calcular me ajudou imenso.Entretanto, achei por bem, falar com a OF, já que se tinha reunido pela Presidente Do Júri, e ainda não me tinha dito nada.Depois da conversa, fiquei coma nítida sensação que não ela própria, não estava com muita vontade que eu fosse, já que adjectivos como "risco", "arriscar","poder chumbar", "tenho a minha consciência tranquila", e alguns mais que foram utilizados.Fiquei com aquela sensação do "bicho papão".
Este seu artigo, nesta altura,caiu do céu aos trambolhões,e fiquei fascinado com o que li, pois sempre fui da sua opinião.Ajudou-me bastante, o que desde já lhe agradeço, a tomar consciência de factos inerentes a esta "terrível prova de maratona", após 4 anos de trabalho dedicado, e deixou-me com o pensamento, que alguém me vai julgar, em 3 dias,todos aqueles infindáveis dias de trabalho, e o facto, que eu trabalho, hoje em dia,como especialista, pois estou fisicamente e geograficamente separado da OF e até de especialistas, pois no meu CS trabalham 2 médicos, eu e uma recém especialista, que a nível de experiência, eu vou anos luz à frente.Já me alonguei bastante, facto que peço desculpa, mas considere isto como um desabafo e um elogio enorme ao seu artigo.
Cumprimentos de um colega
Gasel!!
Não te sabia responsável pelos "dias que voam"!!
Já cá tinha andado a espiolhar umas vezes, mas hoje vim cá parar pelo google porque ontem fiz a prova curricular, hoje a prática e amanhã faço a teórica, e estava com vontade de ouvir falar sobre sofrimentos semelhantes (vulgo procrastinação quando devia estar a estudar). São 3 dias de sofrimento atroz, com as ditas olheiras e ar angustiado...
Queria só deixar-te um abraço, dizer-te que a malta vai crescendo, e que agora certamente voltarei a este cantinho!!
Grande abraço,
JC (do desabafos)
Oh desgraçado, que me trouxeste lembranças malditas, de uma semana atormentada pela ansiedade e uma mistura de confusões.Desejo-te tudo de bom, pois sei perfeitamente o inferno de Dante que estás a passar...Mas amanhã acaba tudo..E é um novo principio...
Abraço
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